Para o próximo governo, não haverá como fugir do ataque frontal ao problema fiscal. Nesse contexto, qualquer possibilidade fora do convencional de mobilizar recursos no setor público é muito bem-vinda e deve ser examinada com toda a atenção.
Nesse terreno, se inserem as oportunidades de antecipação da entrada de recursos, mais conhecidas como securitização de recebíveis, em que fluxos futuros de receitas relativamente garantidas — que tendem a ficar escondidas e inertes por muito tempo e com risco de deterioração — podem se transformar em um volume expressivo de recursos a curto prazo, com inúmeras possibilidades de utilização. A exemplo de várias operações similares, essas oportunidades estão presentes no dia a dia dos mercados financeiros.
Nelas, devem-se incluir dívidas tributárias de empresas e pessoas para com o governo, mais conhecidas como “dívida ativa”, que se referem, na verdade, a tributos não recebidos em exercícios anteriores, que têm uma perspectiva firme de retorno aos cofres dos governos materializadas em fluxos similares aos já observados no passado.
Leia mais de Raul Velloso
Equacionar e crescer mais
Tirar governadores não resolve
“Não podemos desistir de fazer uma reforma da Previdência mais completa”
Nesse caso, a partir da análise dos fluxos históricos de recuperação dessas receitas, projeta-se a capacidade futura de ingresso de tais recursos por meio de metodologias já estabelecidas no sistema financeiro. Posteriormente são transformados em ativos financeiros capazes de gerar recursos líquidos expressivos a curto prazo ou servir de garantia em parcerias com o setor privado, por exemplo. Referindo-se a bases tributárias pretéritas, não têm como comprometer a capacidade de gestão financeira das administrações futuras.
Ora em tramitação na Câmara, após o OK do Senado, e com boa perspectiva de rápida aprovação naquela Casa, o projeto de lei complementar 204/16 procura consolidar as normas relacionadas a esse tipo de securitização, tendo definido como referência do seu potencial arrecadatório a totalidade dos créditos inadimplidos existentes, e não apenas os chamados parcelamentos. Essa possibilidade mais restrita permitiria o recebimento imediato de apenas um percentual desprezível do potencial arrecadatório dado pela totalidade dos créditos inadimplidos existentes. O ponto central é que hoje já existe tecnologia testada no mercado para adotar uma modelagem que jogue o foco sobre os fluxos totais regulares decorrentes do estoque de créditos, e não apenas dos parcelamentos.
Somente para o conjunto dos estados, estima-se, com base nos dados observados entre 2012 e 2017, que esse fluxo pode alcançar a expressiva marca de R$ 9,4 bilhões anuais, onde São Paulo é responsável por um quarto do total, com forte indicação de melhoria futura em resposta à implantação de instrumentos de identificação e cobrança dos contribuintes.
Esse fluxo tende a se repetir todos os anos, e dele pode derivar, para uma estruturação no período de dez anos, a expressiva quantia de R$ 94 bilhões, o que implicaria na obtenção imediata de recursos líquidos oriundos do mercado de cerca de R$ 31 bilhões e os restantes R$ 63 bilhões serem convertidos, por exemplo, em ativos garantidores de longo prazo para o setor privado, ou destinados a fundos previdenciários.
Cabe notar que existem algumas operações do tipo acima em andamento em várias unidades federativas, considerando a totalidade dos créditos inadimplidos (e não apenas os parcelamentos), com análises dos fluxos respectivos, na forma, a meu ver, mais correta de encarar a questão. Será realmente uma pena que esse processo seja travado por alguma visão limitada do alcance do instrumento, que praticamente o inviabilizará.
Por fim, uma vantagem que muitos não enxergam na inserção privada é a possibilidade de se incrementarem os valores cobrados da dívida tributária hoje inerte nos escaninhos governamentais. Como se sabe, não será aqui, onde é muito grande a quantidade de ações em tramitação no Judiciário, que a gestão pública primará por maior eficiência.
Fonte: “O Globo”, 02/04/2018