“Os governos imperialistas aproveitam a crise para lançar uma ofensiva em torno da questão ambiental para atacar a soberania nacional brasileira. Aos incautos que insistem em tutelar os desígnios da brasileira Amazônia, não se enganem: os soldados do Exército de Caxias estarão sempre atentos e vigilantes, prontos para repelir qualquer tipo de ameaça.”
Quem escreveu isso? Assim, ninguém. A primeira frase é do Partido da Causa Operária, um grupúsculo de ultraesquerda (e, nela, depois da “crise”, aparece um “criada por Bolsonaro”).
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Já a segunda é do general Edson Pujol, comandante do Exército, na Ordem do Dia lida no último dia 23. Mas as duas ficam bem juntas, abraçadas no ninho do nacionalismo. A nação, ensinou Benedict Anderson, é uma “comunidade imaginada”. O patriotismo nacionalista, registrou Samuel Johnson, é “o último refúgio dos canalhas”.
A invocação da soberania nacional é o refúgio clássico de governantes quando estrangeiros apontam rupturas dos compromissos internacionais assumidos pelo país, desrespeito às leis nacionais ou violações dos direitos dos cidadãos. Os canalhas perfilam-se à sombra da bandeira sempre que emergem temas diplomáticos globais, como as políticas ambientais e os direitos humanos. Nessas horas, a extrema direita e a esquerda tradicional revelam suas notáveis semelhanças. Então, uns e outros começam a empregar as palavras “imperialismo” e “colonialismo”.
Jimmy Carter assumiu a Presidência dos EUA em 1977 e lançou sua política de direitos humanos, afastando Washington das ditaduras militares do Cone Sul. Ernesto Geisel reagiu rompendo o acordo militar bilateral para “não sujeitar o Brasil à interferência externa”. O general Gregório Álvarez, homem-forte da ditadura uruguaia, tentou costurar um pacto com o Brasil para resistir à “subversão comunista” e ao “desrespeito dos EUA à soberania” dos dois países. Eles só não aplicaram o rótulo de “comunista” a Carter para reservar o espetáculo do ridículo à extrema direita bolsonarista.
A guerra de verdade toma, eventualmente, o lugar da guerra retórica. Leopoldo Galtieri deflagrou a Guerra das Malvinas, em 1982, para unir a Argentina em torno de uma sangrenta ditadura que submergia. “As Malvinas são argentinas —e os desaparecidos também.” A resposta da oposição evidenciou o dilema da esquerda, incapaz de se desvencilhar de seu discurso ritual anti-imperialista. No fim, a ditadura desabou —mas como resultado da humilhação militar.
Soldados de Caxias, soldados de Bolívar. O hino da “luta contra o imperialismo” acompanha as prisões e a tortura na Venezuela chavista. “Esses bandidos vão lá e falam mal do país e ganham milhares de dólares”: Nicolás Maduro utiliza, para as ONGs de direitos humanos, a mesma linguagem que Jair Bolsonaro usa para as ONGs ambientalistas. ONGs formam um universo heterogêneo, multifacetado. Mas, na retórica compartilhada pelo nacionalismo autoritário de direita e de esquerda, todas são agentes do “inimigo externo” pois podem representar contrapontos ao poder estatal.
No G7, com o plano de ajuda para combate a incêndios e reflorestamento, Emmanuel Macron deu um xeque ao rei, prendendo Bolsonaro no canto do tabuleiro diplomático. Depois, sua incauta sugestão de um estatuto internacional para a Amazônia ofereceu aos nacionalistas um atalho rumo ao “último refúgio”.
A Amazônia, no imaginário militar, é o “verde de nossas florestas”, uma das cores da bandeira, e o pilar setentrional da doutrina geopolítica de integração nacional. Os “soldados de Caxias” estão lá, nas largas faixas de fronteiras mortas, nos caminhos líquidos disputados pelo narcotráfico.
A Ordem do Dia de Pujol, tão parecida com o brado insignificante da Causa Operária, era ainda mais previsível que a próxima fagulha de incêndio. Nem por isso deixa de ser uma fuga para o “último refúgio”.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 31/8/2019