Formam um idioma destinado a explicar eventos marginais as rotinas. Quando “a vida” nega ou dá mais do que se espera — uma loteria, por exemplo, entra em cena o dualismo azar ou sorte.
Travei conhecimento com essa linguagem quando minha avó Emerentina me pediu um palpite para o jogo do bicho. Vovó jogava no bicho diariamente e frequentava uma roda de pôquer de “gente educada” e “bem-vestida”, incapaz de uma “grosseria”. Um dia, ela me explicou essa aristocracia das cartas: “Eles sabem perder e só quem perde sabe ganhar. Ademais, continuou, é preciso jogar para se descobrir vivo ou morto”. Minha avó sabia o que dizia. Seu primeiro marido foi assassinado à bala por um rival inconformado.
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– Meu netinho, disse a um garoto de oito anos, dê um palpite para o jogo do bicho.
– Como assim?
– Diga o nome de um bicho que você gosta e eu vou jogar.
– Elefante! Pronunciei orgulhoso porque estava usando na prática e na vida o que havia visto com admiração e alegria num filme de Tarzan no dia anterior.
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No final da tarde fui chamado por Vovó e a encontrei na sala-de-visita muito bonita no seu austero vestido preto. Estava empoada e com cabelos cuidadosamente penteados. Fui recebido com um sorriso tão aberto como seus braços nos quais eu cai para receber o incondicional afeto que nos abandona quando viramos adultos.
– Você acertou, deu elefante na cabeça! Disse, passando para minhas mãos uma moeda com a qual eu me entupi de chocolates comprados na esquina da nossa rua no Bar do Soares.
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Criado num país no qual quem segue as leis, paga imposto e lê instruções é considerado um babaca conforme ouvi numa pesquisa, confesso o meu inconformismo com a desobediência malandra e esperta como norma, vigente no espaço público. Quando atravesso uma rua movimentada e fico diante de um automóvel que aguarda minha passagem; ou entro numa fila na qual abrem caminho para o idoso que hoje sou, entendo que estou com sorte. Do mesmo modo e pela mesma regra, sinto-me azarado quando redescubro uma sistemática roubalheira pública desfigurando o sistema financeiro nacional.
Quando saio de casa para o trabalho, oscilo diante de um trânsito normal (quando tenho sorte) ou engarrafado (nos dias de azar). Ademais, enfrento a incerteza de não saber se as tais reformas sem as quais o Brasil vai acabar, serão ou não aprovadas. Ou se o supremo magistrado da nação vai bosquejar mais uma crise. Aos oitenta e dois asnos, eu ainda vivo num país que não se acertou com suas rotinas.
Sei, porém, do seguinte: minha vida em casa é mais previsível do que na rua. Em meio a pessoalidade muitas vezes exagerada ao ponto de englobar o mérito, o lar ainda é mais seguro do que as decisões dos poderes da República. No nevoeiro das minhas dúvidas, não posso deixar de imaginar que a aprovação da Reforma da Previdência será mais ou menos equivalente a acertar no elefante!
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A experiência do menino transformou-se na obsessão profissional do estudante de sistemas culturais que são alternativos. Assim aprendi que nenhuma cultura suprime o idioma das coincidências, das fortunas e dos acidentes. Não existem sociedades perfeitas aprendi, um tanto chocado, com um Lévi-Strauss que contrariava meus professores certos dos rumos da História Universal…
Poucas sociedades jogam tanto com a sorte como a brasileira. Poucas entram na nossa feroz jogatina com suas leis e instituições. E têm tanta familiaridade com a proximidade de um abismo social que é um flerte com o desastre. Somos, como diz meu ex-mentor, o brasilianista Richard Moneygrand, inimigos tenazes de nós mesmos.
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Como não tenho e nem acredito que exista uma chave para o futuro — exceto a do risco e da boa-fé — sou um cultor da esperança.
Como tal, estou mais ou menos convencido que se fiz minha avó acetar no elefante um dia vou ganhar na mega-seana. Então, entupido de dinheiro, irei inaugurar a Era da Filantropia no Brasil, tirando a pátria de uma piedosa e sovina e caridade.
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A quem possa interessar, informo que os diplomas de Harvard são escritos em Latim.
Fonte: “O Globo”, 29/05/2019