A rendição do governo frente a paralisação de caminhoneiros e grandes empresas de transporte de cargas dá uma dimensão da erosão da capacidade do nosso sistema político de coordenar os conflitos que têm aflorado, de forma cada vez mais aguda, na sociedade brasileira. A crise econômica e o agravamento dos embates distributivos, sem que o Estado se demonstre capaz de mediá-los, tendem a esgarçar ainda mais o nosso tecido social.
O crescimento no número de homicídios, que no último ano ultrapassou a casa dos 60 mil, é uma face dessa conflagração. Nunca é demais relembrar que a violência letal recai de forma desproporcional sobre jovens pobres, negros, do sexo masculino, que se encontram fora da escola e do mercado de trabalho. Políticas criminais irresponsáveis, pautadas na violência e no arbítrio, além do encarceramento em massa, têm contribuído apenas para agravar a espiral da violência. Nossos cárceres se transformaram em instrumentos de cooptação e treinamento de novos regimentos para o crime organizado.
Não são apenas os homens jovens, no entanto, que estão no olho dessa tempestade. O recente caderno especial Exploração Sexual Infantil, publicado pela Folha no dia 24, relata a vida de meninas que habitam nossas periferias sociais e oferece um retrato sórdido da forma como abdicamos, como sociedade, de deveres fundamentais para com as novas gerações.
Quando permitimos que meninas de 12 anos, que frequentam “fluxos”, novo nome de bailes funk de rua, sejam submetidas a maratonas de penetrações, sob a cumplicidade das autoridades e o silêncio de grande parte da sociedade, é sinal de que algo está errado.
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O desabamento de um prédio da União ocupado por moradores de rua e explorados por um pretenso movimento social, no centro do São Paulo, sem que nenhuma das esferas da administração assuma qualquer responsabilidade, é mais um retrato do descaso e da dificuldade de integração dos setores mais
vulneráveis da sociedade.
Difícil esperar que essa enorme massa de pessoas, especialmente de jovens, exposta a toda forma de violência, a quem tudo foi negado, tenha condições de se inserir na economia, contribuir com a comunidade ou mesmo que tenha razões para se comportar em conformidade com normas sociais e jurídicas indispensáveis a uma comunidade pacífica.
A crescente militarização da vida brasileira nos últimos anos não é um acidente, mas sim uma consequência da incapacidade dos sucessivos governos, em diferentes gradações, de construir um projeto de país que a todos beneficie.
A polarização e incapacidade das lideranças políticas de formular um discurso que integre os interesses e as necessidades dos diversos segmentos da sociedade brasileira vem abrindo espaço para um populismo irresponsável e intolerante.
De positivo, em contrapartida, temos o envolvimento cada vez maior de jovens com movimentos de renovação da política, pautados em maior participação, inclusão, transparecia e tolerância. Como as barreiras de entrada no sistema político são muito altas, dificilmente assistiremos a uma forte renovação de nossos partidos e quadros políticos nas próximas eleições.
Mas esse é um movimento que gerará frutos a médio prazo. Até porque, como estamos testemunhando, governos sem representação são incapazes de coordenar os conflitos em sociedades abertas.
À nossa geração, se tiver um pouco de juízo, cumpre lutar para que os canais de diálogo e de participação não se fechem, para que nossos filhos ao menos tenham a oportunidade de buscar superar os seus enormes desafios dentro de um regime democrático.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 26/05/2018