A afronta institucional feita recentemente ao Supremo Tribunal Federal (STF) relegou a segundo plano a atuação da Corte às vésperas do primeiro turno das eleições, quando autorizou e desautorizou por duas vezes, em curto período de tempo, o ex-presidente Lula a conceder em sua cela entrevista a um jornal. Como se tornou rotineiro, a Corte parece ter seguido não a legislação constitucional e infraconstitucional em vigor, mas um roteiro marcado pelo nonsense.
Apesar das implicações políticas da primeira autorização para que o ex-presidente pudesse ser entrevistado, o que poderia influir no resultado do pleito, ela não foi concedida pelo colegiado, mas por decisão monocrática. Já o recurso que pedia a suspensão da autorização foi encaminhado ao presidente da Corte, mas acabou sendo decidido pelo vice-presidente, por razões não justificadas. Além disso, o recurso foi impetrado por uma pessoa jurídica de direito privado – portanto, sem legitimidade para ajuizá-lo. Não bastasse isso, o ministro que decidiu monocraticamente, autorizando a entrevista, voltou a fazê-lo pela segunda vez e interpelou o presidente do STF, o qual, preservando sua autoridade, referendou a decisão do vice-presidente.
Essa é mais uma amostra do hiato entre como os juízes devem julgar e como, de fato, julgam. Das 116.669 decisões tomadas pelo STF em 2015, só 17.752 foram colegiadas. Por valorizarem mais a decisão monocrática do que a ideia de colegiado, os ministros têm contribuído para o esvaziamento das deliberações coletivas. Assim, o que cada um deles ganha em poder, o STF – enquanto instituição – perde em legitimidade, credibilidade e autoridade. Igualmente, como as decisões monocráticas parecem seguir a agenda própria de cada ministro, a falta de qualidade deliberativa de uma ordem constitucional é simplesmente desprezada. Ou seja, não é vista sequer como problema, afirmam dois pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB), Gabriel Rubinger-Betti e Juliano Zaiden Benvindo, em artigo publicado na revista Direito, Estado e Sociedade (n.° 50), da PUC-RJ, e sugestivamente intitulado Do Solipsismo Supremo à Deliberação Racional. Mesmo quando o plenário julga questões fundamentais, na maioria das vezes a decisão não resulta de um debate orgânico e uma construção coerente, mas de simples somatório de opinião dos ministros. Há julgamentos até em que não há clareza nem mesmo do que está sendo debatido, uma vez que cada magistrado pode destacar aspectos distintos do caso sub judice sem, necessariamente, abordar os pontos do voto anterior. Como extrair daí um precedente?
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Mas não é só. Quando um ministro antecipa seu voto para a imprensa antes de ouvir o relator, tentando desse modo influenciar politicamente a decisão, ou, então, quando pede vista com o deliberado objetivo de travar o julgamento, na prática isso mostra que ele não vê seus colegas de toga como interlocutores à sua altura, preparados para discutir o caso. Como lembram Beti e Benvindo, “a corte decide, mas não julga como se corte fosse”. No solipsismo do Supremo prevalece o personalismo decisório acompanhado de técnicas argumentativas que carecem de maior sustentação em relação a que modelo de racionalidade judicial adotar, dizem os dois pesquisadores, após chamarem a atenção para a falta de coerência e de consistência interpretativa de muitas decisões judiciais.
Comportamentos nem sempre funcionais de ministros do Supremo são particularmente visíveis nos julgamentos de questões constitucionais e de casos com fortes implicações políticas. Tudo isso pode comprometer a Corte como instituição. Instituições são fundamentais para a vida social, econômica e política. Elas definem as regras do jogo. Estabelecem os valores fundamentais e as liberdades públicas. Moldam o comportamento de cidadãos e grupos. Determinam que tipo de economia e sistema político efetivamente se tem. Estimulam o investimento e a eficiência produtiva. E garantem os direitos sociais. No caso das instituições de Direito, quando uma Corte Suprema funciona bem, ela influi positivamente na sociedade. Quando não funciona bem, o resultado inexorável é a imprevisibilidade inerente à aplicação das normas constitucionais, acarretando incerteza jurídica, dificultando o cálculo econômico, aumentando os riscos, multiplicando custos regulatórios e desestimulando investimentos.
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É justamente esse o grande problema do Supremo. Na medida em que seus integrantes preferem as decisões monocráticas e o protagonismo que elas lhes propiciam, o STF hoje está longe de poder ser comparado a uma Suprema Corte como a americana, com sua longa trajetória de decisões respeitáveis e paradigmáticas. No limite, dada a obsessão de alguns ministros pelo proscênio político, eles parecem personagens de um conto de Guimarães Rosa, Minha Gente, no qual descreve um de seus tios – um homem “em cheio, de corpo, alma e o resto, embrenhado na política”, dizia ele. “Política sutilíssima”, pois o tio “faz oposição à presidência da Câmara de seu município, ao mesmo tempo que apoia, devotamente, o presidente do Estado. Além disso, está aliado ao presidente da Câmara do município vizinho ao Leste, cuja oposição trabalha coligada com a chefia oficial no município n.° 1. Portanto, sé é o que bem o entendi, temos aqui duas correntes cívicas estapafúrdias, que também disputam a amizade e os favores do situacionismo do grande município ao Norte. Dessa trapizonga em instabilíssimo equilíbrio resultarão vários deputados estaduais e outros federais, e, como as eleições estão próximas, tudo vai muito intenso e muito alegre, a maravilhas mil”.
Como alguns de seus ministros podem, por sua atuação mais política do que técnica, ser comparados ao tio de Guimarães Rosa, o STF, depois dessa confusão em torno da autorização e desautorização da entrevista de Lula, parece uma trapizonga judiciária.
Fonte: “Estadão”, 29/10/2018