A década de 1980 assombra o Brasil. O choque entre uma nação presa a amarras ancestrais e a esperança na democracia na campanha “Diretas já”. O fim da ditadura, aos tropeços, com sequelas que persistem. Os planos econômicos, a hiperinflação, o controle de preços de combustíveis, de que ainda não nos livramos. As promessas irreconciliáveis da Constituição de 1988, cujo preço ainda pagamos. Os estertores da Guerra Fria, a queda do Muro de Berlim, nosso eterno retorno à mediocridade política, ainda mais incurável que o flagelo da aids a assombrar o planeta.
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Quem morasse em São Paulo podia escolher entre ver Zubin Mehta reger a Filarmônica de Nova York ou pular ao som de Elza Soares na danceteria Madame Satã; entre um show do bluesman B. B. King ou uma banda alternativa no Lira Paulistana; entre a guitarra inexplicável de Stanley Jordan no Free Jazz Festival ou a do Ira! no Carbono 14, a dos Titãs ou do Barão Vermelho no Radar Tantã, ou qualquer guitarra em qualquer lugar. A contestação estava por toda parte. A trilha sonora dos anos 1980 foi o rock. Pela primeira vez, os discos que mais vendiam, os shows que atraíam mais público eram dominados não pela sempiterna MPB, mas pela geração de Titãs, Paralamas, Legião Urbana, RPM e companhia. O rock saiu das rádios alternativas para as paradas, gravadoras, novelas, até o programa do Chacrinha.
É essa trilha que o roqueiro Lobão tenta reviver em seu novo CD duplo, desdobramento da pesquisa que resultou no livro Guia politicamente incorreto dos anos 80 pelo rock. Para além dos ataques aos desafetos e dos erros factuais (já explorados à exaustão), a questão que intriga Lobão é singela: por que o sucesso não perdurou? Por que, depois da explosão roqueira, o Brasil se tornou um “imenso arraial”, um “pagode mauricinho, anexando o axé dos trios elétricos, evoluindo para o sertanejo universitário dos playboys e peruas”? Ele atribui a responsabilidade a um grupo de artistas e produtores “divinizado, quase por decreto, por meio das ações definidoras de um articulado lobby de imprensa, de maciças inclusões de suas músicas em temas de novelas, de especiais de tevê dedicados à sua assunção e de execuções no rádio a peso de ouro”.
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É uma teoria conspiratória que ignora a essência da indústria cultural.
A tensão entre valor estético e sucesso popular está na natureza da cultura de massas. Vale para qualquer estilo. A renovação periódica é necessária à própria sobrevivência. Resulta de limites aos direitos autorais e de gostos efêmeros. Negócios exigem, por fim, um mínimo de estabilidade — recurso em falta quando talentos como Cazuza ou Renato Russo morrem de aids, outros como Lobão vão presos, e a vida desregrada se torna regra.
Mas a paranoia não tira de Lobão um mérito: apontar “o nível de ideologização, formulação, carnavalização e perpetuação de uma mentalidade e de uma estética que nos impossibilita nos enxergarmos de verdade como povo, e não essa baboseira ingênua de malandros pré-fabricados, guris cenográficos, ‘genis’ ideológicas, matronas carentes, relativismos cínicos, verdades tropicais de araque”. Data dos anos 1980 a difusão nefasta de normas tidas como aceitáveis no discurso e na arte. Se, hoje, tachar de “politicamente correto” virou clichê para agredir sem argumentos ou disfarce para preconceitos, isso não torna menos grave cercear a expressão artística em nome de ideais. “No imenso buraco de seu vazio existencial, o brasileiro vive a confeccionar alegorias profiláticas no intuito de evitar qualquer descoberta mais adulta e honesta de si mesmo”, diz Lobão. Para ele próprio, a descoberta mais adulta e honesta vem no final, quando pede perdão a desafetos como Herbert Vianna, a quem acusara de plagiá-lo. “Esse negócio de geração provoca na gente sentimentos conflitantes, onde cabem no mesmo coração o ódio e o amor fraternal”, escreve. Nos CDs, as interpretações mais tocantes são de duas canções dos Paralamas: “Lanterna dos afogados” e “Quase um segundo”. Nada como o perdão e a gratidão para superar o ressentimento.
Fonte: “Época”, 07/06/2018