Atruculência do presidente Donald Trump, exibida mais uma vez com a ameaça de uma guerra comercial, será vitoriosa se muitos governos buscarem a redução de danos por meio de acertos bilaterais. Se isso ocorrer, o governo de uma potência, os Estados Unidos, conseguirá atropelar facilmente a ordem multilateral. Dois parceiros, Canadá e México, ficaram logo isentos das novas tarifas sobre importações de aço e de alumínio. O gesto amigável é parte da renegociação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta). Essa renegociação é um dos itens mais vistosos da agenda proposta desde a campanha eleitoral pelo atual presidente americano.
Outros países poderão ser isentos, disse na sexta-feira o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin. O governo brasileiro já manifestou preferência “pela via do diálogo e da parceria”. É uma atitude prudente e moderada, à primeira vista, mas perigosa para o sistema. Será o diálogo um bom substituto para a legalidade internacional – mesmo para uma legalidade ainda incompleta e menos eficaz que a ordem vigente num Estado?
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O presidente Trump confirmou o novo lance protecionista na quinta-feira à tarde. Pouco depois apareceu a resposta brasileira, em nota assinada por dois ministros, o de Relações Exteriores, Aloysio Nunes, e o de Indústria e Comércio Exterior, Marcos Jorge. A nota mistura vários assuntos e diferentes níveis de relações entre os países.
O Brasil, segundo o texto, exporta para os Estados Unidos principalmente produtos semiacabados de aço, usados como insumos pela indústria americana. Ao mesmo tempo, os brasileiros são os maiores importadores de carvão siderúrgico dos Estados Unidos. Para que comprometer um comércio vantajoso para os dois lados? Em seguida, há uma referência ao esforço internacional para eliminar o excesso de capacidade do setor siderúrgico. Vale a pena minar esse trabalho?
Em terceiro lugar – e só então – aparece uma referência a regras internacionais: as novas medidas protecionistas são contrárias às normas da Organização Mundial do Comércio (OMC) e injustificáveis pelas exceções de segurança previstas no sistema (Trump falou em segurança nacional para justificar as tarifas).
Na parte final surge a grande e confusa salada de soluções possíveis e de critérios: “Ao mesmo tempo em que manifesta preferência pela via do diálogo e da parceria, o Brasil reafirma que recorrerá a todas as ações necessárias, nos âmbitos bilateral e multilateral, para preservar seus direitos e interesses”. Em outras palavras: se falhar o diálogo, o Brasil vai reclamar o cumprimento da regra internacional, além de possivelmente retaliar. E se o diálogo funcionar e as exportações brasileiras ficarem isentas de sobretaxas? Nesse caso, danem-se as normas internacionais e a OMC?
Se a isenção valer para alguns países, a ordem multilateral ainda será violada. Isso ocorrerá enquanto as tarifas forem mantidas arbitrariamente para qualquer parceiro. A violação será evidente pelo menos por causa da justificativa baseada na segurança nacional. Qualquer parte prejudicada poderá recorrer ao Órgão de Solução de Controvérsias da OMC com boa chance de vencer. Outros países poderão associar-se como terceiros interessados no processo, mas farão isso se tiverem acertado com o governo americano uma solução para seus problemas?
Além disso, a ação por intermédio da OMC normalmente segue três etapas. Há uma tentativa inicial de entendimento. Se falhar, abre-se o processo. Encerrada essa etapa, o lado perdedor pode recorrer e mais tempo será consumido, mesmo quando a decisão final é facilmente previsível. Confirmada a condenação, a parte vencida pode ainda recusar a ordem de interromper o procedimento ilegal.
Nesse caso, o país vencedor é autorizado a retaliar. Dada a autorização, impor um prejuízo comercial a um parceiro torna-se um ato legal, assim como qualquer castigo determinado por um tribunal. Mas há uma diferença enorme entre as duas situações e essa é uma das deficiências do sistema de normas internacionais.
Na ordem estatal, a pena imposta por um tribunal é aplicada por meio da força da instituição pública. O confronto, nesse momento, é entre um réu condenado e o poder organizado da sociedade política. No caso da retaliação autorizada pela OMC, o confronto é entre componentes soberanos do sistema internacional.
A retaliação nem sempre se concretiza. Em muitos casos é substituída por um acerto mais confortável para os dois lados e menos perigoso para o mais fraco. O desdobramento da história será ainda mais incerto se a parte condenada for um país governado por Donald Trump. Ele sempre mostrou desprezo pela OMC e, de modo mais amplo, por qualquer sistema multilateral de normas.
Ao disparar o primeiro tiro, Trump confirmou sua disposição de enfrentar uma guerra comercial. Pior para o sistema. Ao admitir isenções para alguns parceiros, como o México e o Canadá, continuou afirmando uma posição de força. Isenções serão concessões ditadas de acordo com os interesses definidos na Casa Branca. Quem escolher o entendimento bilateral, em busca desse benefício, admitirá a superioridade da parte mais truculenta. Além disso, de alguma forma legitimará o ato inicial de guerra. A alternativa legalista, o recurso à OMC, poderá dar em nada se Trump estiver disposto a negar ainda mais abertamente a ordem multilateral.
Com todas as suas imperfeições e deficiências, essa ordem tem, no entanto, funcionado com algum sucesso. Mas é preciso fortalecê-la e aumentar a eficácia de suas decisões. Neste momento os prognósticos apontam para a direção oposta. A resistência de Trump a uma ordem global civilizada é só uma das ameaças. Outra, igualmente considerável, é a disposição de alguns governos de resolver o problema por entendimento bilateral e dar o resto por esquecido.
Fonte: “Estadão”, 11/03/2018