O combate à corrupção no Brasil ganhou as manchetes no mundo todo graças à Operação Lava Jato. À medida que os processos que atingiam as figuras mais notáveis foram chegando ao Supremo Tribunal Federal (STF), ela sofreu um refluxo. Havia um questionamento legítimo sobre sua sobrevivência e o impacto na luta contra os corruptos.
O movimento da ala garantista do STF ficou evidente pelas decisões da Segunda Turma, onde o relator da Lava Jato, ministro Edson Fachin, se tornou com frequência voto vencido diante dos demais ministros, sempre capazes de apontar abusos cometidos contra direitos dos réus.
Desde que vieram à tona as conversas publicadas pelo site The Intercept Brasil, atribuídas a procuradores da Lava Jato e ao então juiz e atual ministro Sérgio Moro, a operação sofreu um novo revés. A percepção de que Moro perdera a imparcialidade contribuiu para dar razão aos argumentos há muito disseminados pelos garantistas.
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É nesse contexto que deve ser compreendida a decisão tomada em caráter provisório pelo presidente do STF, ministro Dias Toffoli, de suspender as investigações abertas com base nos relatórios financeiros detalhados da Receita Federal e do Banco Central que não tenham sido obtidos por meio de autorização judicial.
Toffoli adotou a medida em resposta a um processo que corre em segredo de Justiça, o recurso do Ministério Público Federal (MPF) contra uma decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) anulando uma ação tomada com base em dados obtidos sem autorização judicial. Mas o alvo é outro: o senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente da República, Jair Bolsonaro.
A investigação das movimentações financeiras no gabinete de Flávio quando deputado estadual no Rio de Janeiro, conhecida como Caso Queiroz, partiu de um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) identificando detalhes de transferências e saques atípicos de seu ex-assessor Fabrício Queiroz. Num período de 12 meses, somaram R$ 1,2 milhão e incluíam saques sequenciais na boca do caixa, além de um cheque à mulher do presidente, Michelle Bolsonaro.
Nenhuma dessas descobertas derivou de ordem judicial, apenas de uma sequência de relatórios fornecidos espontaneamente, ou mediante pedidos do Ministério Público Estadual. O STF já decidiu que, sem pedido de um juiz, o papel do Coaf deve estar limitado a fornecer dados genéricos de movimentações que possam levantar suspeita, não detalhados como no caso de Flávio. A previsão é que o plenário da Corte volte à questão só em novembro, para julgar a liminar de Toffoli.
Procuradores de diversas áreas e orientações saíram em protesto contra a decisão, por julgar que ela emperra o combate à corrupção. Em inúmeros casos, a primeira pista das ilegalidades são as suspeitas de lavagem de dinheiro despertadas pelos relatórios do Coaf. Até que ponto um juiz deve ser necessário para que sejam produzidos? Trata-se de uma pergunta que toca no mesmo ponto sensível levantado pelas denúncias contra Moro e a força-tarefa da Lava Jato: o grau de interferência do juiz nas investigações em andamento.
Em países como França ou Itália, há juízes de duas naturezas. Há aqueles mais próximos dos procuradores, que instruem o processo e comandam na prática as investigações, autorizando quebras de sigilo ou operações de busca. Há outros mais distantes, que entram em cena apenas quando todo o caso já foi investigado, para julgar as denúncias já prontas. No Brasil, os papeis de instrutor e julgador se confundem.
Inspirado na italiana Operação Mãos Limpas, Moro passou – tomando como verdadeiras as mensagens que vêm sendo publicadas – a agir como juiz de instrução e a comandar a estratégia da Lava Jato em coordenação com o MPF. Noutros casos, como o de Flávio Bolsonaro, procuradores buscam, eles próprios, mais autonomia para investigar, sem depender de levar toda decisão a um juiz.
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O combate à corrupção depende da agilidade. Mas também depende das garantias jurídicas aos acusados. Juízes como Moro e os procuradores cariocas que investigam Flávio têm sido tachados de afobados e atropelados na tentativa de obter seus troféus.
Ambos são, no fundo, reflexo de uma deficiência do nosso sistema de investigação, uma espécie de bug da Justiça. Não há no Brasil a figura do juiz de instrução. Nem na magistratura, nem no Ministério Público.
Ao confundir os papeis de instrução e julgamento, nossa Justiça dá margem tanto ao arbítrio (de quem crê poder atropelar a lei em nome da luta contra os corruptos) quanto à paralisia (de quem interrompe processos à menor sombra de ameaça às garantias dos réus).
Fonte: “G1”, 18/07/2019