Acreditar em milagre — “creio porque é absurdo”, dizia Tertuliano; cremos — reitera o bom senso, porque a vida sem encantamento não é suficiente.
O milagre é o que acontece a despeito dos limites impostos pela realidade. Houve um tempo em que viajar de avião era um perigo; em outro, supúnhamos que os políticos roubavam, mas não com tanta obstinação.
Na minha longa vida, vivi alguns milagres. Um deles foi ver o Brasil ganhar cinco Copas do Mundo. Outro foi ter sobrevivido à minha audácia antropológica de “viver com índios”. Neguei o futuro previsível àquela época: virar advogado, arquiteto, engenheiro, militar ou médico, para tentar “ser antropólogo”. Uma profissão na qual não se vira porque nela há um encontro conflituoso e transformador — investigar outras gentes produz uma singular experimentação de si mesmo. Insidiosamente, os costumes e crenças do povo onde se foi um intruso disposto a deslumbrar-se com o seu cotidiano mais banal acabam perturbando a crença na humanidade onde se nasceu.
Tal como na arte, não há como “virar antropólogo”. Há somente como se dispor a experimentar a marginalidade de quem denegou suas crenças para tentar compreender as dos seus anfitriões, cujo estilo de vida é visto como selvagem. Vida de “índios”, como falamos com profunda ignorância e preconceito.
Talvez esse tenha sido um dos meus milagres quando, com Julio Melatti, passei quatro meses com os “índios gaviões” no Rio Praia Alta, sul do Pará, em 1961.
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Ali ocorreu uma experiência inusitada: éramos dois antropólogos para meia dúzia de nativos, cuja cultura os interesses locais haviam dissolvido. Aquela humanidade que hoje, felizmente, conta com cerca de 500 almas, teve a força de superar uma cruel depopulação ao lado da agressão dos “castanheiros”. Sua chamada “integração” ao Estado nacional brasileiro foi violenta.
Relendo os meus diários, a limpidez da velhice me deixa ver — com Joseph Conrad na minha cabeça e Darcy Ribeiro ao meu lado — o coração das trevas. O momento em que uma humanidade se percebe às voltas com sua extinção. O milagre foi testemunhar a sobrevivência dessa sociedade, que eu mesmo condenei à extinção no livro “Índios e castanheiros” (escrito com Roque Laraia, em 1967), como uma orgulhosa tribo depois de ter convivido tanto tempo com a morte.
Foi ali que, caçando, imaginei estar perdido.
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Em 1962, Kaututere — um índio falante, determinado e curioso que, por isso mesmo, recebeu em Itupiranga o pejorativo apelido de “Doidão” — veio ao Rio, hospedou-se no Leme e o guiei parcialmente. Vale lembrar que, na caçada que fizemos, ele me assombrou por sua desenvoltura em localizar os porcos, livrá-los de suas entranhas e levá-los para a aldeia.
Na época, meus pais moravam em Copacabana, onde encontrei Kaututere desalinhado nas roupas que vestia e incomodado pelos sapatos que lhe apertavam os pés. Levei-o para ver a praia e as lojas, onde ele teve o desconforto de ser visto — tal como fui em sua aldeia — como curiosidade.
Visivelmente inseguro, meu hospedeiro voluntarioso experimentava o reverso do que eu havia vivido entre sua gente. Agora, era ele o intruso dependente de um guia. Na mata, eu era uma criança. Agora, amávamos de mãos dadas em Copacabana. Era ele o amedrontado que se surpreendia com quantidade de kupen. De estrangeiros — cujo número ultrapassava sua imaginação. Só relaxou quando, no apartamento, conheceu meus pais, irmãos e tia, o que, certamente me humanizava, ao mesmo tempo em que o remetia de volta à humanidade que era a sua, onde todos se conheciam.
Por ignorância, não repeti a experiência de Franz Boas com um nativo kwakiutl que o visitara em Nova York. Não Kaututere, o etnólogo Gavião, para nenhum lugar especial. Ele foi apenas um índio em Copacabana. Mas fizemos um profundo experimento antropológico: vimos um ao outro de modo reverso por meio do milagre da reciprocidade — esse perfume do humano.
Fonte: “O Globo”, 22/08/2018