Outro dia, num artigo, reproduzi uma frase do sociólogo Ulrich Beck em que ele afirma que as coisas estão mudando tão rápida e amplamente que as pessoas têm a impressão de que o mundo ficou maluco.
Pois acrescento outra impressão inquietante: a de que o mundo está pegando fogo. Com causas e consequências diferentes, três grandes incêndios assustaram o planeta: Amazônia, Califórnia e Austrália.
O grande incêndio da Austrália foi mal compreendido pelo governo brasileiro, que provocou as ONGS e artistas: por que não se manifestam?
Ilusão. No momento em que escrevo, de Pink a Elton John, os artistas já doaram US$15 milhões aos bombeiros de South Wales e Victoria, as regiões mais atingidas pelo fogo.
“Imprecionante”, como diria o ministro Weintraub. Acontece que a reação do governo australiano foi parecida com a do brasileiro, ao afirmar que eram incêndios frequentes e regulares nas regiões atingidas.
O primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, interrompeu suas férias no Havaí, mas ainda assim foi severamente criticado nas regiões devastadas.
Seu governo não se prepara para as consequências do aquecimento global. A própria oposição está de mãos atadas porque as forças políticas dependem das forças que produzem carvão e gás. Para completar a visão do sistema, a mídia, dominada por Rupert Murdoch, tende também à negação das importantes mudanças climáticas.
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Alguns cientistas impressionados com o processo acham que entramos na era do fogo, a qual chamam de Piroceno.
Acontece que não estamos apenas sob impacto de grandes incêndios, mas de eventos extremos, tempestades, furacões, secas prolongadas.
Isso acontece num mundo que reage à tese do aquecimento global, e às conquistas da ciência de um modo geral. É uma tendência ampla que não se limita a negar o aquecimento, mas se estende ao movimento antivacinação e, na sua face mais radical, chega ao terraplanismo.
Não há o que fazer, exceto seguir argumentando pacientemente. Mas talvez fosse necessária uma inflexão tática.
Ao invés de convencer sobre o aquecimento global, centrar a discussão nos eventos extremos que se sucedem.
Mesmo quem não acredita em aquecimento global pode ser convencido de que os desastres naturais são cada vez mais frequentes e é preciso uma séria preparação em escala nacional.
Isso não tem nada a ver com esquerda ou direita, muito menos é uma doutrinação do marxismo internacional.
Talvez seja possível obter dessa corrente de céticos, e até adversários da ciência, algum tipo de compromisso sobre o fortalecimento de uma Defesa Civil nacional.
Embora os dirigentes atuais sejam muito decididos a combater a ideia de aquecimento ou mudanças climáticas, um certo pragmatismo tem chance no Brasil, independentemente da posição deles.
Tive a impressão de que, depois das grandes inundações em Blumenau, a Defesa Civil de Santa Catarina se organizou melhor e se tornou uma das mais eficazes do país.
Os bombeiros de Minas Gerais, depois de tantos desastres com barragens, transformaram-se, por sua vez, numa referência internacional nesse tipo de intervenção.
Num mundo que parece maluco e prestes a se consumir em chamas, é muito difícil convencer com grandes ideias, embora os governos não param de se reunir para debater o tema.
O desenvolvimento de uma sólida e bem equipada Defesa Civil pode ser um objetivo alcançável, se houver uma concentração de forças nessa tarefa, aparentemente, modesta.
O interessante é que isto diz respeito apenas parcialmente ao governo e ao Parlamento. É essencial preparar a sociedade em todos os níveis. Não alcançaremos o rigor e a disciplina dos japoneses.
Mas também não somos os vira-latas que os pessimistas acreditam que somos. Há experiências pontuais de comunidades de risco que já sabem quem precisa de ajuda na hora crítica, onde estão guardados os barcos, para onde fugir quando necessário.
Enfim, a sensação que tenho é que, se baixarmos a bola, temos mais chance de chegar ao gol, apesar das exasperantes dificuldades da partida.
Mas, se tivéssemos tido a intuição de criar realmente um grande front pelo saneamento básico, o atraso não seria tão pesado como é hoje.
Não trabalho com a tese de uma coisa ou outra. Apenas acho que é preciso definir o possível e o necessário em cada momento e não se perder apenas nas belas ideias gerais.
Fonte: “O Globo”, 13/1/2020