É patente a falta de estratégia americana para lidar com as consequências do ataque que matou o general iraniano Qassem Soleimani na última sexta-feira. Basta, para convencer-se disso, acompanhar a contradição entre os fatos que se sucedem a cada dia.
Logo depois do ataque, o presidente Donald Trump aceitou mandar reforços militares à região para enfrentar a provável retaliação do Irã. Falou-se no envio de mais 3.000 soldados. Trump mencionou uma lista com 52 alvos a atingir – referência aos 52 americanos mantidos como reféns na embaixada de Teerã depois da revolução islâmica de 1979 –, entre eles sítios históricos e culturais.
Pois ontem veio à tona um memorando de um general americano, depois desmentido pela cúpula do Departamento de Defesa, aceitando a resolução do Parlamento iraquiano que determinou a retirada dos 5.200 soldados ainda mantidos pelos Estados Unidos no Iraque, sob o pretexto de combater o Estado Islâmico (EI).
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Qual, afinal, é a intenção dos americanos: enviar tropas ou retirar tropas? Não é a primeira vez que Trump vacila diante do que fazer. Quando um drone americano foi derrubado depois de entrar no espaço aéreo iraniano, no ano passado, ele primeiro considerou um ataque, depois desistiu. A própria decisão de abater Soleimani, de acordo com os relatos, surpreendeu os militares.
A hesitação reflete uma contradição intrínseca à concepção que Trump tem das guerras externas em que os americanos estão envolvidos. De um lado, ele é o isolacionista que ordenou a retirada das tropas da Síria e quis sair também do Afeganistão. Não aceita o papel de “polícia do mundo” defendido por antecessores. De outro, é o valentão que quer matar todos os terroristas e exibir a “grandeza” americana.
O Trump isolacionista prefere confiar em aliados regionais para estabilizar os conflitos. Não importa se são tiranos como o ditador sírio Bashar Assad, o egípcio Abdel Fatah al-Sisi ou o príncipe saudita Mohammed Bin Salman. Para esse Trump, melhor um autocrata confiável que garanta a estabilidade do que tentar exportar a liberdade ou a democracia, postura adotada por seus dois antecessores.
Se é verdade que a democracia implantada no Iraque depois da Guerra do Golfo não deu lá muito certo (o Parlamento é composto basicamente por grupos étnicos ou religiosos que não abriram mão de seu poderio militar regional), o isolacionismo de Trump também tem limites.
No Oriente Médio, desde o início do mandato ele procurou estabelecer uma relação mais próxima com a Arábia Saudita (fora a que os Estados Unidos já mantinham com Israel). Deu apoio financeiro e enviou armas aos sauditas, mas nada disso funcionou para estabelecê-la como potência incontestável diante do Irã. Não acabou com a guerra no Iêmen contra os Houthis, nem deteve o poderio iraniano na Síria e no Iraque.
É aí que entra em ação um outro Trump, aquele que na campanha eleitoral prometia “bombardear até a m… do Estado Islâmico”, atacou furiosamente a Síria em 2017, quando Assad foi acusado de lançar armas químicas, e decidiu revidar as provocações iranianas nos últimos meses matando Soleimani.
É o Trump que acredita em matar terroristas como única forma de combater o terror, não tem paciência para discussões detalhadas sobre objetivos militares e concebe as ações de guerra exclusivamente como atos de força – como lutadores num ringue de vale-tudo. O Trump que quer agir de modo simples, rápido e violento.
Derivam daí os choques frequentes com os militares profissionais, cuja ação depende não de impulsos ou da vontade de demonstrar força, mas de estratégia e objetivos políticos. Exemplo disso foi o pedido de demissão do general John Mattis no final de 2018, inconformado com a decisão de retirar as tropas americanas da Síria e com a traição que isso representaria aos aliados curdos.
Como os dois Trumps convivem numa única mente, o resultado é a postura errática, por vezes contraditória. Quando moderada pelos fatos ou pela estratégia já estabelecida, pode até funcionar. É o caso da Síria, onde Trump mudou muito pouco na política do governo Obama para combater e exaurir o Estado Islâmico. Era, até a semana passada também o caso do Iraque, por motivo similar.
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A morte de Soleimani, contudo, torna mais explícito o paradoxo chamado Trump. Ele está diante de um desafio sem precedente. O principal risco está na retomada do programa nuclear iraniano. Não se trata de uma questão que possa ser resolvida por um ataque de precisão, como o que matou Soleimani. Uma guerra de joystick – modalidade preferida tanto por Obama quanto por Trump – será incapaz de desmantelar as instalações subterrâneas onde as centrífugas enriquecem urânio.
Foi tal percepção que levou Obama a estabelecer a negociação com o regime dos aiatolás, apesar da postura traiçoeira e das mentiras com que o Irã tratava seu programa nuclear. O acordo fechado em 2015 era imperfeito e cheio de buracos, mas pelo menos adiava a bomba iraniana uns dez ou quinze anos. Ao rompê-lo, Trump desencadeou uma escalada que o deixou sem opção melhor.
Se vestir o boné de golfe do Trump isolacionista, a bomba iraniana estará mais próxima, talvez a menos de um ano do primeiro teste, com consequências dramáticas para o equilíbrio geopolítico ou para o fornecimento de petróleo à economia global. Se puser o chapéu de caubói do Trump valentão, poderá desencadear uma nova guerra no Golfo, a terceira em trinta anos. As anteriores comprovam que, por lá, ter mais força não basta para vencer.
Fonte: “G1”, 07/01/2020