Uma avaliação ponderada dos cem primeiros dias da administração Bolsonaro na área da política externa pode ser feita em dois planos: o formal, que é o da diplomacia enquanto instrumento governamental de atuação do Brasil em suas relações exteriores, e o substantivo, que é o conteúdo mesmo da política externa, tal como determinada pelo Presidente da República e implementada pelos seus auxiliares da área.
No caso do governo Bolsonaro, o que se constata, em primeiro lugar, é o caráter inédito tanto da diplomacia quanto da política externa, com respeito a padrões históricos da diplomacia e da política externa, ou se quisermos, posturas mais tradicionais, num e noutro terreno. No primeiro aspecto, assistimos a uma espécie de “revolução cultural” na diplomacia, com uma quebra generalizada de hierarquia – que os militares diriam tratar-se de “coronéis mandando em generais” –, expressa na substituição dos antigos subsecretários-gerais (nove embaixadores anteriormente, ou seja, ministros de primeira classe, com experiência de postos no exterior) por sete novos secretários, todos ministros de segunda classe, que passaram a chefiar embaixadores como chefes de departamento, que em geral pertencem a um estrato geracional superior ao do próprio chanceler, que é o que poderíamos chamar de um “junior ambassador”, ou seja, alguém que nunca exerceu chefia de posto no exterior.
Essa revolução cultural também se traduziu numa completa reorganização do Itamaraty, em sua estrutura funcional, o que poderia ser benéfico em termos de ajustes nos processos de trabalho, mas que no caso foi conduzida de forma autoritária, sem qualquer consulta a própria Casa, o que também é inédito na história do Itamaraty. Divisões foram extintas, novas criadas, todas elas renomeadas – o que implicou na substituição de centenas de plaquetas de identificação de setores e áreas –, mas também com um alto grau de arbítrio, próprio ao chanceler designado. Os Estados Unidos, por exemplo, que antes estavam integrados ao Departamento da América do Norte, agora desfrutam de um Departamento exclusivo, ao passo que toda a Europa – considerada um “vazio cultural”, em artigo altamente bizarro do então candidato a chanceler– foi relegada a um único departamento na Secretaria de Negociações Bilaterais com o Oriente Médio, a Europa e a África, o que certamente deve ter deixado os europeus bastante descontentes. Imagino que seja por isso que muitos dos embaixadores europeus em Brasília tenham procurado bem mais o vice-presidente, general Hamilton Mourão, do que o próprio chanceler ou o secretário geral do Itamaraty. Essa é a revolução cultural organizacional, feita por cima, “von Oben”, como diria o próprio chanceler.
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No plano substantivo, o que se observou foi uma outra formidável revolução copernicana nos fundamentos e princípios da política externa, que deixou a tradicional postura equilibrada seguida durante décadas em favor de uma aliança estreita, não com os Estados Unidos propriamente, mas com o governo Trump. Talvez neste caso o chanceler formalmente designado tenha sido menos importante na inversão de tendência do que a própria família Bolsonaro, em primeiro lugar aquele que já foi designado como o “chanceler paralelo”, e que talvez seja o efetivo, ou principal: o atual presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados. O inacreditável é que esse representante do povo brasileiro usurpou o seu mandado ao ter proclamado, nos EUA, a impossível e improvável adesão de “todo o povo brasileiro” ao projeto do presidente americano de construir um muro na fronteira com o México, ao mesmo tempo em que classificava como “vergonha” a existência de tantos imigrantes brasileiros ilegais nos EUA. Esse senhor, preconceituoso e mal informado, talvez não saiba que esses trabalhadores brasileiros criam riqueza nos EUA e a remetem ao Brasil – vários bilhões de dólares por ano –, o que é um aporte significativo em nossa balança de transações correntes, sob a forma de transferências unilaterais, ou seja, sem contrapartidas.
Essa outra revolução na política externa vem sendo contida, controlada e propriamente tutelada pelos militares membros do governo, que têm atuado como verdadeiros diplomatas, ao contrário do atual chanceler, cuja adesão ao aventureirismo eleitoral trumpista, no caso da Venezuela, beira a intervenção nos assuntos internos de outro Estado, o que colide não só com a nossa Constituição (artigo 4º), como também com princípios consagrados do direito internacional. Esse comitê de tutela militar sobre o chanceler também se exerceu precocemente quando da inacreditável aceitação de um projeto de base militar americana no Brasil, prontamente e cabalmente rejeitada pelo ministro da Defesa e pelos demais militares.
Existem ainda vários aspectos bizarros na atual política externa, como essa luta insana contra o monstro metafísico do “globalismo”, uma fantasmagoria sem qualquer fundamento na realidade, mas que foi inculcada no atual chanceler – que a ela aderiu provavelmente de maneira oportunista – por aquele a quem eu chamo de “sofista da Virgínia” e de “Rasputin de subúrbio”. As iniciativas mais danosas em relação a Israel ou à China também foram contidas, revertidas ou minimizadas, por mentes mais sensatas da atual administração ou de fora dela, como a comunidade de negócios, os próprios chineses ou os mesmos militares.
Em resumo, nos cem primeiros dias da administração Bolsonaro coexistiram iniciativas certamente inéditas no terreno da diplomacia e da política externa, sem que preocupações cruciais com respeito ao papel do Brasil no tocante à agenda externa – em comércio, Mercosul, meio ambiente, direitos humanos e democracia, e no respeito aos valores e princípios caros à nossa tradição diplomática – tenham sido sequer tocados em termos de planejamento ou de ações diplomáticas visando maior inserção internacional do Brasil. O Itamaraty permanece em grande medida paralisado pelas coisas estranhas que vem ocorrendo na Casa de Rio Branco desde o início de 2019, e não parece perto de enveredar pelo dinamismo conhecido em tempos mais amenos de exercício normal de sua diplomacia profissional.
Se durante o lulopetismo, tivemos o que pode ser chamado de “diplomacia partidária”, a do partido hegemônico, e que levou o Brasil a alinhar-se com algumas das mais execráveis ditaduras do continente ou alhures, nos tempos atuais temos, ao que parece, uma espécie de “diplomacia familiar”, feita de preconceitos mal informados, de iniciativas francamente bizarras e vários outros erros na seleção de prioridades para a agenda diplomática nacional, inciativas voluntaristas e carentes de qualquer exame técnico mais acurado, que podem custar caro ao Brasil, se efetivamente implementadas, nos meses e anos à nossa frente. Um consenso parece estar se formando na chamada comunidade epistêmica de relações internacionais do Brasil, no sentido em que os aspectos mais “heterodoxos” da atual diplomacia e na política externa precisam ser contidos, e talvez revertidos, em benefício do próprio Brasil e no de seu atual governo.
Em política externa, como na interna, tudo depende dos resultados efetivos, mas, num julgamento talvez precipitado, os resultados registrados até aqui – a aliança com Trump, a escolha de um lado nos difíceis problemas do Oriente Médio e outras opções altamente divergentes com respeito à memória histórica da diplomacia profissional do Brasil – são bastante preocupantes para os que vivem nessa comunidade setorial. Cem dias talvez sejam um prazo muito curto para julgar quanto a esses resultados, mas estaremos atentos aos desenvolvimentos futuros.
Fonte: “Diplomatizzando”, 08/04/2019