Estamos a viver tempos republicanos difíceis. As insuficiências da política são fundas e gritantes, gerando crescentes insatisfações com a democracia. Em um mundo com pressa de viver, as pessoas não mais prezam a paciência da espera; querem soluções rápidas e imediatas. Cria-se, assim, um nítido descompasso institucional: o querer do povo vai muito além da capacidade de entrega de que a classe política é capaz. Entre desencontros de vontades, as pulsões sociais se avolumam; os extremos se exaltam; a moderação cede; as angústias viram indignação; os conflitos se tornam cada vez mais estridentes.
Por força dessa litigiosidade excessiva, o egrégio Supremo Tribunal Federal (STF) vem ganhando papel de destaque nas intrincadas relações da República. No início, o fenômeno foi bem recebido, sendo visto como uma forma extensiva de poder; o processo, todavia, correu demais. A inação do Executivo e a inoperância do Congresso resultaram numa confusa democracia sentencial, transformando o Supremo em uma instância de mediação ativa da política, quando, em sua gênese, deveria apenas agir de forma pontual, sóbria e austera, fulminando a validade de leis e atos de poder despidos de constitucionalidade.
Ou seja, vemos um Supremo cada vez mais ordinário e ligado a questões menores. Tal processo degenerativo, por deletério, não mais pode continuar. A hora, além de máxima prudência, exige um recuo estratégico da corte com vistas à preservação de sua autoridade.
Sim, o equilíbrio republicano impõe ao STF o delicado trabalho de sanar eventuais extravagâncias da política, protegendo a Constituição de opções administrativas ou legislativas despidas de elementos de razoabilidade jurídica.
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O problema é que – em sociedades vivas, livres e plurais – a complexidade da existência pode gerar difíceis entrechoques de interesses, passíveis de múltiplas respostas constitucionalmente aceitáveis, impondo ao Congresso a indelegável tarefa de fazer a escolha política necessária ao bom funcionamento social.
Em outras palavras, problemas políticos não se resolvem com sentenças judiciais, pois o juiz está adstrito à lei posta, enquanto que o Parlamento tem ampla liberdade formativa do justo legislado. Em conhecida expressão doutrinária, “a lei é a política que se cristalizou, a política é a lei em devir”.
Indo adiante, a sabedoria de Gustavo Zagrebelsky, ex-presidente do Tribunal Constitucional italiano, ensina que uma das principais funções da lei maior é fixar os pressupostos da convivência da comunidade política, tornando a democracia uma via pacífica de solução de divergências e conflitos sociais. Para tanto, a Constituição precisa da autoridade de um alto tribunal reservado, consciente de suas competências e dos limites de sua atuação institucional. Afinal, embora supremo, o STF não pode tudo.
Ora, em uma época histórica de agudas divisões intestinas na sociedade brasileira, cabe ao Supremo Tribunal Federal elevar o espírito público superior, tendo como norte os valores éticos de uma ordem jurídica justa. Sem cortinas, um país politicamente corrupto exalta um constitucionalismo ético relativo. Os graves e numerosos esquemas brasileiros de corrupção revelam que nosso processo de consolidação constitucional está longe do fim. E, só chegará ao fim, com um Supremo fielmente comprometido com os ideais de justiça e retidão de procedimentos.
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Neste trajeto de otimização e efetividade normativa, é função da Suprema Corte externar – sempre que chamada – que a Constituição não aceita a desonra democrática como um hábito da atividade política. A boa pedagogia constitucional impõe a séria e efetiva punição dos desmandos do poder, pois não existe nada mais humilhante à Constituição do que um corrupto rindo impunemente das instituições da Justiça. Nesse contexto desafiador, o Supremo deve ter a coragem de dizer as verdades constitucionais que o Brasil precisa escutar. Que a atual geração não se rebaixe ao jogo vil da política, vindo a honrar as tradições de Pedro Lessa, Philadelpho Azevedo, Amaro Cavalcanti, Prado Kelly, Aliomar Baleeiro, Paulo Brossard, entre outros magistrados de finíssima linhagem.
A democracia do futuro requer um Tribunal Constitucional que não tenha medo de fazer o que é certo, que contribua para a consolidação de um sistema de integridade pública e que faça de suas decisões exemplos soberanos de justiça, responsabilidade e comprometimento com o bem do Brasil. No final, não existe melhor sentença do que uma Justiça modelar, cabendo ao Supremo o maior exemplo.