Aprovada a reforma da Previdência, o Ministério da Economia anunciou que a prioridade seria a reforma administrativa e o Pacto Federativo. Para os menos familiarizados com os labirintos de Brasília, a reforma tributária teria ido para o vinagre, mais uma vez.
Acontece que três novidades desautorizam esse pessimismo: 1) O protagonismo do Congresso na matéria, traduzido em iniciativas para reformar a perversa tributação do consumo. Na Câmara, apareceu a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 45, de autoria do deputado Baleia Rossi (MDB-SP). 2) A existência de um bom projeto, preparado sob a liderança do economista Bernard Appy, que serviu de base para a proposta. E 3) uma inédita adesão unânime dos Estados à PEC 45, ainda que com alguns ajustes.
No governo federal, que tivera a primazia de iniciativas no tema, duas ideias foram expostas. A primeira seria a recriação da CPMF com outro nome e de caráter permanente, em lugar da provisoriedade de suas versões anteriores. O objetivo seria compensar a perda de receita da programada eliminação da contribuição previdenciária patronal. A medida contribuiria para criar empregos, embora os exemplos conhecidos no mundo tenham resultado mais em aumento de salários do que na criação de postos de trabalho.
A segunda ideia era criar um Imposto sobre o Valor Agregado (IVA) federal, em substituição a três incidências (IPI, PIS e Cofins). A justificativa seria uma suposta recusa dos Estados em aceitar que o ICMS fosse incorporado a um IVA nacional. Assim se permitiria que eles, se assim o desejassem, aderissem ao IVA federal. Se não aderissem, teríamos um IVA dual, parte na União e parte nos demais entes federados.
A primeira ideia, como se sabe, foi abandonada quando o presidente Bolsonaro rejeitou a recriação da CPMF. A segunda teria perdido prioridade, como acima mencionado. Foi essa desistência que acarretou a impressão de que a reforma tributária morreria novamente. Na verdade, a PEC 45 continua sob firme apreciação da Câmara.
A PEC 45 prevê a criação do Imposto de Bens e Serviços (IBS) em substituição a cinco tributos: IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS – os três primeiros, do governo federal; o ICMS, estadual; e o ISS, municipal. O IBS, uma modalidade de tributação do consumo, seria cobrado no destino sobre o valor agregado ao longo da cadeia de produção e comercialização. Trata-se de modelo adotado por cerca de 170 países.
A ideia do Ministério da Economia de os Estados aderirem ao IVA federal é inviável. De fato, como o IVA federal terá base ampla de mercadorias e serviços e será provavelmente cobrado no destino, enquanto o ICMS incide na origem e não alcança a maioria dos serviços (tributados pelo ISS), não haveria como compatibilizar os dois impostos. Para tornar viável um modelo em que os Estados pudessem aderir ao IVA federal seria necessário antes unificar ICMS e ISS e migrar a tributação para o destino. Mas essa é exatamente a mudança que o governo federal alega ser difícil fazer.
Voltemos ao apoio dos Estados à PEC 45. Eles têm ressalvas, como a de excluir a União do comitê gestor que administrará a implementação e o funcionamento do IBS. Reivindicam, ainda, a criação de um fundo para financiar a política de desenvolvimento regional, pois ficará proibida a concessão de incentivos fiscais com essa finalidade. Essas e outras ideias dos Estados são perfeitamente passíveis de negociação.
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A PEC 45 prevê uma transição de dez anos para sua completa implementação. No geral, isso parece suficiente para que empresas beneficiadas por incentivos fiscais de IPI, ICMS e ISS possam se ajustar ao novo quadro institucional. Mas há casos complexos, que podem não ser acomodados nessa transição. Exemplos marcantes são a Zona Franca de Manaus (ZFM) e a indústria automobilística.
A ZFM tornar-se-ia inviável com a perda dos incentivos, o que teria elevados impactos econômicos e sociais na região. Haverá que encontrar mecanismo para preservar a ZFM por um período suficiente para que se estruture uma política de desenvolvimento alternativo para a região. No caso da indústria automobilística, é provável que muitas empresas tenham dificuldade de se ajustar em dez anos ao fim dos benefícios do ICMS.
Essas e situações semelhantes terão de ser enfrentadas agora ou, caso fracasse a PEC 45, em outro momento do futuro. O que não pode ser aceito é a ideia – que parece habitar algumas mentes – de que, diante de tais desafios, seria melhor esquecer a reforma tributária e buscar apenas melhorar a legislação infraconstitucional, com vista a reduzir a litigiosidade do sistema. Isso resultaria na preservação da disfuncional estrutura da tributação do consumo. Ressalte-se que ela é a maior fonte de ineficiências da economia, o que inibe o crescimento da produtividade, da competitividade dos nossos produtos e a expansão do potencial de crescimento do PIB, da renda e do emprego.
É hora, pois, de o Ministério da Economia incorporar a percepção de que o apoio dos Estados à PEC 45 é sinal de que ficou possível sonhar com um IVA nacional, qual seja, o IBS previsto nessa proposta. Em vez de buscar uma proposta que possa chamar de sua, o mais racional seria aliar-se ao presidente da Câmara, que patrocina a PEC 45, e contribuir tanto para seu aperfeiçoamento quanto para a transição, que se prevê complexa, caso o Congresso a aprove.
A PEC 45 e o desenho de sua transição via lei complementar ficarão mais difíceis sem o engajamento do governo federal, particularmente considerando a necessidade de lidar com a miríade de situações criadas ao longo das últimas cinco décadas de uso intensivo do ICMS como instrumento de atração de investimento pelos Estados.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 10/11/2019