As incógnitas reeditam o episódio das biografias autorizadas, felizmente banidas da cena jurídica pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas de maneira bem mais ampla e ameaçadora à liberdade de imprensa.
Desta vez a fonte dos problemas é o chamado direito ao esquecimento, isto é, prerrogativa que as pessoas teriam para serem esquecidas pela opinião pública e pela imprensa por atos praticados no passado, ainda que verídicos.
Esse tema, polêmico na Europa, chega ao Brasil por força de um recurso movido pelos irmãos de Aída Curi, assassinada na noite de 14 de julho de 1958, no Rio de Janeiro, e retratada há alguns anos em um programa de TV. A controvérsia surgiu para responder à seguinte questão: parentes de vítimas podem exigir que seus nomes sejam omitidos de documentos, textos ou reportagens sobre fatos antigos, rememorados no presente?
Patrícia Blanco: “Notícias falsas. Todo cuidado é pouco”.
A julgar pela Constituição, a resposta é não. Em seu artigo 5º, a Carta assegura, como cláusula pétrea, ampla liberdade de expressão por meio de divulgação de pensamento e informação, seja por meio do jornalismo, rádio, televisão, Internet, artes ou qualquer outro meio, como, por exemplo, a música. Contudo, as pressões pelo direito ao esquecimento, direito de ser deixado em paz ou o direito de estar só, têm crescido e se direcionam, principalmente, aos sites de busca, em confronto aberto com o direito público à informação.
Inicialmente, pode-se fazer algumas observações evidentes. O direito ao esquecimento surgiu por iniciativa de ex-criminosos que, após o cumprimento das penas, não queriam ser expostos pelos antecedentes criminais, o que lhes causavam inúmeros prejuízos. Também, por iniciativa de pessoas que um dia foram famosas, que decidiram voltar ao anonimato. O debate foi se elastecendo e agora abrange vários outros aspectos da vida.
De qualquer forma, o direito ao esquecimento não pode ser um direito integral. Cabe em algumas situações pontuais, fruto da análise caso a caso, sob pena de anular a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa, além do próprio direito à informação, todos garantidos pela Constituição. A rigor, é muito parecida com a questão das biografias não autorizadas que o STF liberou pondo fim a uma longa e penosa controvérsia.
Pode-se também argumentar que o cidadão tem direito à dignidade, à inviolabilidade da honra e à privacidade; todos assegurados pela Constituição, mas fica a pergunta: quais são os limites desses direitos, se os crimes cometidos ganham relevância social e chamam atenção da mídia? Ou se são crimes contra a humanidade ou hediondos, como tortura, discriminação racial e pedofilia? Então, não haveria necessidade de uma lei específica.
Na União Europeia, em 13 de maio de 2014, a corte decidiu que links com informações sem relevância ou desatualizados poderiam ser apagados, mas ficou nisso e o almejado balanceamento entre o direito público à informação e o direito privado ao esquecimento continuou adiado, sem encontrar um ponto de equilíbrio.
Não seria essa uma forma de censura? Ou, como definiu o editor do jornal Daily Mail, Martin Clarke: “é o equivalente a entrar numa biblioteca e queimar os livros de que eu não gosto“. Se os fatos ocorreram, por que negá-los? O direito ao esquecimento, por qualquer ângulo que se avalie, não seria uma afronta ao direito à memória e ao inegável interesse público?
O nome, direito ao esquecimento, parece nos convidar a esquecer a história, como, por exemplo, os crimes praticados pelos nazistas ou, no caso brasileiro, durante os anos do Estado Novo ou da ditadura militar? É possível conciliá-lo com a liberdade de expressão e de imprensa?
É inegável que o tema ganhou nova atualidade por força da Internet que, praticamente, eterniza as notícias e informações. Em questão de segundos e alguns cliques, os fatos ocorridos no passado ganham vida, inclusive com fotos e vídeos.
Nessa versão universal da biblioteca de Alexandria é praticamente impossível algo ser esquecido. No Brasil, não é diferente. A grande dificuldade, como em outros países, é que não se pode falar em regras ou em tese. São sempre casos concretos, a exemplo do episódio que ficou conhecido como a Chacina da Candelária, no Rio de Janeiro, e o caso Aída Curi, estuprada e morta em 1958 por um grupo de jovens. Neste último, os familiares de Aída sentiram que não havia necessidade de resgatar suas histórias, já que aconteceram há muitos anos e não faziam mais parte do conhecimento comum da população. Será?
Vale lembrar que, decorridos 50 anos do crime, a jovem de 18 anos – ganhou notoriedade em uma época em que as mulheres começavam a ser notícia pela beleza, pelo talento no mundo artístico e por ocupar cargos antes reservados aos homens – foi jogada de um prédio de 12 andares em Copacabana, no Rio de Janeiro. A revista O Cruzeiro denunciou o fato de o caso jamais ter sido solucionado.
É legitimo ponderar que o registro da história é um patrimônio imaterial dos povos e dos fatos, portanto, é um direito da sociedade. O apontamento de crimes é uma forma da sociedade analisar a evolução de seus próprios costumes e de deixar para as futuras gerações marcas de como se comportava para que, refletidos, não se repitam. Esse é, em parte, o trabalho do jornalismo atual quando, ao contrário da era de Gutemberg, seu papel ganha dinâmica e universalidade com a Internet. Tal é realidade que não pode, evidentemente, ser imêmore.
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