A inteligência das populações dos países mais avançados passou a regredir de forma galopante, depois de firmes e regulares avanços na segunda metade do século passado. Tal reviravolta tem sido chamada de “reversão do efeito Flynn” porque o pioneiro e mais notável analista dos resultados de testes de QI (quociente de inteligência) foi o americano James Robert Flynn, hoje professor emérito de ciência política da universidade de Otago, na Nova Zelândia.
Impossível saber a real abrangência geográfica, tanto do próprio efeito, quanto de sua inversão, pois isso depende de acesso a fidedignas bases de dados, como as longas séries com resultados dos testes a que foram submetidos os recrutas das forças armadas de nações como Austrália, Finlândia, Grã-Bretanha, Holanda, Noruega e Suécia.
Na Noruega, por exemplo, de 1976 a 1991 (último ano de serviço militar obrigatório), o QI médio dos alistados caiu 0,30 pontos ao ano, depois de ter aumentado 0,20 pontos ao ano entre as gerações de 1962 a 1975. Pior: há muitos indícios de que essa queda tenha se acelerado desde 1991. O suficiente, portanto, para que o problema seja considerado gravíssimo, já que a expectativa mais negativa seria a de eventual estabilização do grau de inteligência nesse tipo de amostragem.
Possíveis explicações para tão inesperada e preocupante fenômeno geraram ácida controvérsia. De um lado, hipóteses genéticas realçam duas variáveis: são as famílias menos inteligentes as que mais procriam, e são os filhos de pobres imigrantes que carregam menor acúmulo de ativos culturais (capital humano). Do outro, hipóteses ditas ambientais destacam o recuo da leitura de livros frente à onipresença das telas de TV, computadores e celulares; dificuldades do sistema educativo; a crise do Welfare State; e, sobretudo, problemas de saúde pública.
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Essa clivagem genética/ambiente se tornou anacrônica desde que foi cabalmente comprovada a importância da epigenética, assim como a pertinência da conjectura de Darwin sobre adaptação/seleção nos âmbitos comportamental e simbólico. À luz das quatro dimensões hereditárias do processo evolucionário, é pura tolice antagonizar genética e ambiente. Além disso, os pesquisadores já deveriam saber que qualquer fato concreto é sempre síntese de múltiplas determinações. O que exige aposta em alguma abordagem de conjunção complexa, em vez de emulação das duas muletas do paradigma cartesiano: disjunções e reduções.
Enquanto isso não ocorre, merece máxima atenção uma das causas ambientais: os estragos provocados por compostos químicos que alteram o sistema hormonal. Tudo indica que os chamados “perturbadores endócrinos” estejam entre as mais relevantes causas da virada à desinteligência.
Por perturbadores endócrinos entende-se um amplo leque de substâncias químicas que interferem no conjunto de glândulas do corpo – pâncreas, tireoide, hipófise e suprarrenais – alterando a eficácia dos hormônios, assim como sua produção endógena. Esses tóxicos são muito comuns nos alimentos industrializados, cosméticos, produtos de higiene pessoal (principalmente sabonetes, loções, desodorantes e dentifrícios), plásticos, tecidos sintéticos, colchões, materiais de construção, e, obviamente, produtos de limpeza e praguicidas domésticos. Tudo vendido pelo comércio varejista sem qualquer tipo de cuidado e informação, ao contrário do que ocorre com muitos remédios e alguns praguicidas agropecuários, pois, em princípio, estão sujeitos a receituário e instruções de uso, além de explícitos alertas sobre os riscos.
As cinquenta páginas do “Statement of the Endocrine Society on Endocrine-Disrupting Chemicals” já haviam enfatizado, em 2009, o quanto os perturbadores endócrinos podem ser deletérios à inteligência. Em especial, a altíssima probabilidade de dano à formação do cérebro do feto sempre que uma grávida tenha contato com tais poluentes. A novidade é que esse alarme acaba de ser ratificado no periódico Endocrine Connections (2018, 7, R160-R186), mediante revisão de 433 trabalhos – “Thyroid-disrupting chemicals and brain development: an update” – conduzida por três feras do sistema de pesquisa francês: B. Mughal, J-B. Fini e B. Demeneix.
A liderança dessa metanálise foi da endocrinologista britânica Barbara Demeneix, que há muitos anos trabalha no CNRS, é autora do livro Cocktail Toxique (ed. Odile Jacob, 2017), e teve participação de destaque em recente documentário que precisa com urgência ser legendado: “Demain, tous cretins?“.
Quem assistir, com certeza ficará bem mais prudente ao compor sua cesta de consumo. Provavelmente também se perguntará como é possível que as indústrias químicas e farmacêuticas, assim como as cadeias de supermercados, consigam ser tão inescrupulosamente gananciosas, enquanto trombeteiam ser “sustentáveis”. E verificará o grau de monstruosidade delinquente da atual cruzada de empresários e deputados ruralistas brasileiros contra a regulamentação responsável dos agrotóxicos, via “PL do veneno”.
Fonte: “Valor Econômico”, 27/06/2018