O Rio de Janeiro está sofrendo mais um desastre, que pode não ter, até o momento, a gravidade de Brumadinho ou Chernobyl, mas não há dúvida que a dinâmica é parecida.
O fornecimento de água, na cidade, é de responsabilidade de uma estatal estadual, a Cedae, uma sobrevivente das privatizações dos anos 1990 que, desde então, vai enferrujando e agonizando sob o jugo do corporativismo e do parasitismo
Se o Ministério da Economia fosse publicar uma portaria sobre os graus aceitáveis de “parasitas e bactérias econômicas”, como o Ministério da Saúde faz com a potabilidade da água, e com as bactérias de verdade, a Cedae estaria interditada totalmente. Há muito o que debater, a propósito da Cedae, nos temas habituais referentes à privatização – demonstrações financeiras, relações espúrias com o controlador, indicadores operacionais, políticas de pessoal e conluios, contingências, uso político de monopólio de serviço público essencial, investimentos (ou falta deles), mas tudo isso parece sem importância diante de um desastre ambiental e de saúde pública.
Alguma coisa explodiu, acidente provavelmente, ninguém faz essas coisas de propósito (ou faz?). Havia riscos conhecidos? Maliciosamente ignorados? Uma sucessão de pequenos acidentes e erros, um em cima do outro, como é comum em grandes desastres, o fato é que a água que sai das torneiras cariocas tem cheiro, turbidez, coloração amarelada, gosto de lama ou pior, e a companhia reconhece a presença de algo de nome geosmina na água.
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Qualquer um que for à internet é capaz de verificar que a geosmina (C12H220) é um composto orgânico produzido por bactérias de certo tipo. Corro para o site da companhia, onde encontro vários relatórios sobre a qualidade da água. Ali se diz que a empresa colhe amostras regularmente e dá publicidade às “análises laboratoriais”. Vou aos relatórios e leio sobre PH, turbidez, cor, condutividade, fluoreto, cloro, coliforme fecais e escherichia coli.
Era melhor não ter lido.
Na aba de notícias é possível encontrar uma nota à imprensa, de 9 de janeiro, que afirma, peremptoriamente, que “a geosmina não apresenta risco à saúde”. Volto aos exames laboratoriais e concentro em um com o título “contagem de cianobactérias e algas manancial sistema Guandu” e leio o seguinte (os números são da primeira coluna da tabela, contagem na barragem principal em 06/01/2020): Merimopedia sp. (3790), Microcystis sp. (2412), Phomidium sp. (0, que alívio), Pseudanabaena sp. (184), Synechcyris aquatilis (0) e total cianobactérias (céis/mL, 16768).
Dois técnicos assinam o laudo. Me ocorre que esse, como outros exames, podem ter leituras tranquilizadoras para quem é do ramo. Quem não é, fica apavorado, pois descobre que estão lidando com material perigoso, é como morar ao lado de uma usina atômica. Não há nada de tranquilizador em relatórios técnicos incompreensíveis com terríveis designações de bactérias. E mais, especialistas consultados pela imprensa contestam a afirmação da companhia que a geosmina não faz mal à saúde.
O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, afirmou em entrevista que “a água nunca esteve impossibilitada de ser consumida” e que sobre esse assunto “geraram informações controversas, cujas fontes não são oficiais”. O governador entende tanto de geosmina quanto o burocrata Boris Shcherbina,
mandado pelo Partido para lidar com o acidente em Chernobyl, sabia de física nuclear. Quem não viu a série premiada, fica a dica, lembrando que geosmina não é radiação, mas todo o resto é parecido. Onde há bombardeio de boro com areia jogado de helicópteros errando o alvo, vai ter carvão ativado. É uma trapalhada atrás da outra.
Chernobyl funciona como uma metáfora da falência do sistema soviético, tal qual a geosmina é o fim da Cedae e do estatismo parasitário tal como existiu até agora. Depois que o reator explode, a usina nunca mais vai voltar. Esse mundo acabou.
Não se diga que a privatização salva, pois ocorreu algo semelhante com a Vale, só que a empresa e seus dirigentes estão enfrentando os rigores da lei. Seus executivos foram indiciados em homicídio doloso, e vão enfrentar esta acusação na Justiça. O que vai acontecer com a Cedae?
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 26/1/2020
Foto: Reprodução