O antiquário João Pedrosa xingou Chico Buarque e sua família em uma foto no Instagram. “Família de canalhas!!! Que orgulho de ser ladrão!!!”. Foi processado. Retratou-se e até escreveu uma carta de desculpas, mas aparentemente não foram aceitas. Foi condenado a pagar R$ 100 mil à família. Segundo a juíza, o insulto de Pedrosa “acarreta abalo emocional grave a quem quer que seja”. Tenho certeza de que Chico e família nem dormem à noite, de tão abalados.
Ainda mais curioso foi o caso do jornalista Zeca Camargo, que terá que pagar indenização de R$ 60 mil por danos morais à família do cantor Cristiano Araújo, por um artigo (de crítica cultural ao sertanejo e à nossa cultura de celebridades) publicado pouco depois da morte do cantor em um acidente de carro. A família e o empresário se sentiram profundamente desrespeitados. Já o motorista que de fato causou a morte será punido com serviço comunitário e pagará dez salários mínimos a uma instituição de caridade.
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Monica Iozzi foi condenada por um tweet contra o ministro do Supremo Gilmar Mendes. Reinaldo Azevedo, por insultos em uma crítica a Laerte. O clima não está bom para a liberdade de expressão. Em nome de acabar com as ofensas, coloca-se o debate em risco.
Não se trata de defender uma liberdade de expressão pura e inviolável. Se, por exemplo, uma figura pública usa de seu poder de difusão para hostilizar um cidadão qualquer, isso é evidentemente inaceitável. Da mesma maneira, é justo que os formadores de opinião que tentaram viralizar uma campanha caluniosa contra Caetano Veloso recebam alguma sanção. Por outro lado, um reles xingamento num momento de revolta, um comentário indignado ou um artigo crítico, uma piada, por mais que sejam mal colocados, não deveriam resultar em indenizações substanciais, mesmo porque nem geram um dano significativo.
Ao punir qualquer insulto e mesmo críticas consideradas inadequadas, estamos criando uma cultura em que se expressar livremente carrega consigo um risco muito alto. Penso que o melhor seria justamente o contrário: a segurança de que posso criticar qualquer um e que, mesmo se porventura minha crítica passar dos limites ou for mal colocada ou se, num momento de indignação, eu disser alguma grosseria, não serei punido de forma ruinosa. Do jeito que está, cada lado já se prepara para ser ofendido e entrar na Justiça. É a morte de qualquer debate. Se toda vez que me xingarem eu ganhar R$ 100 mil, me xinguem com mais frequência, por favor.
Fazendo o corte ideológico, a esquerda é quem partiu na frente nessa estratégia de silenciar o outro lado pelo processo. Mas a direita está aprendendo rápido: Danilo Gentili tentou, sem sucesso, processar o jornalista José Trajano por acusá-lo de apologia ao estupro. Em outro caso recente, o pastor Silas Malafaia processou o youtuber Felipe Neto por difamá-lo num vídeo. Por fim, a intelectual e militante feminista negra Djamila Ribeiro está sendo processada por ter chamado de “racista” um concurso de fantasias pernambucano no Carnaval passado. Se colarem, mais um passo terá sido dado para inviabilizar o debate.
Xingar os outros é feio. Nem por isso deve ser punido pelo Estado. Na verdade, fazê-lo dificulta as mudanças culturais que, quem sabe, poderão elevar o nível do nosso debate público e, aí sim, fazer com que a troca de insultos não seja o primeiro reflexo em qualquer discussão.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 06/02/2018