Renasceu a ideia de tributar as transações financeiras, uma incidência disfuncional e prejudicial à produtividade. Ela tem o patrocínio do secretário especial da Receita Federal, Marcos Cintra, que defende uma CPMF repaginada para compensar a eliminação de contribuições previdenciárias sobre a folha de pagamentos. Indo mais longe, um grupo de empresários, o Brasil 200, propõe a substituição do sistema tributário por um imposto único sobre transações financeiras. O impacto sobre a eficiência da economia passaria de negativo (no caso da proposta federal) a desastroso.
O imposto único sobre transações financeiras foi defendido pioneiramente na década de 1980 pelo economista americano Edgard Feige, da Universidade de Wisconsin-Madison. A ideia chegou ao Congresso dos Estados Unidos, mas foi rejeitada com base em parecer do Federal Reserve (o banco central norte-americano), que apontou seus inconvenientes econômicos e sociais.
Feige parece ter inspirado Cintra, que lançou a ideia no Brasil em 1989 e a tornou uma espécie de obsessão pessoal. Na época, o Ministério da Fazenda manifestou-se contrário à proposta, mas ela encantou parte do empresariado, que criou campanha em favor do imposto único. O empresário Flávio Rocha, ora membro do Brasil 200 e então deputado federal, apresentou emenda constitucional para adoção da medida – com base na qual se lançou candidato à Presidência da República nas eleições de 1994 –, da qual desistiu.
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O imposto único prometia radical simplificação do sistema tributário e, assim, a redução dos custos de pagar impostos. A nova incidência, arrecadada nas transações financeiras, dispensaria formulários e outras obrigações. A Secretaria da Receita Federal seria extinta. A emenda não foi adiante. Eram muitos os seus graves defeitos.
O imposto único seria uma incidência cumulativa, em cascata, que impregnaria cada etapa do processo produtivo. Haveria incentivos para a integração vertical. As empresas procurariam reduzir ao máximo suas aquisições de insumos, promovendo internamente sua produção. Haveria séria redução da eficiência. Ficaria impossível desonerar as exportações, pois não se teria como calcular o imposto incidente na cadeia produtiva.
A medida atentaria contra a Federação, pois Estados e municípios passariam a depender exclusivamente da União para financiar seus orçamentos. Seria inconstitucional. Governadores e prefeitos combateriam a proposta. Mais, o imposto único agravaria as desigualdades, pois os pobres pagariam mais do que os ricos como proporção de sua renda.
Sob o aspecto creditício, ao incidir sobre as transações com uma alíquota de 2,5% nos recebimentos e pagamentos, o imposto único criaria uma cunha de 5% sobre o custo dessas transações. O spread bancário, já em si alto, aumentaria ainda mais. A elevação da taxa de juros ao tomador final pioraria a atividade de produzir bens e serviços, com efeitos deletérios sobre a produtividade da economia. O Brasil 200 reivindica uma medida suicida.
Desde a criação do Imposto de Renda, a grande inovação foi o imposto de consumo sobre o valor agregado em cada etapa do processo produtivo (IVA). Implementado inicialmente na França em 1954, o IVA permitiu a completa eliminação da cumulatividade, incentivando ampla descentralização econômica. Seu efeito positivo na eficiência e na produtividade inspirou vários países a adotá-lo. Hoje, o IVA é adotado em mais de 160 países e se tornou a regra na União Europeia.
Flávio Rocha voltou a defender o imposto único. Em artigo na Folha de S.Paulo (11/7) tachou o IVA de imposto de nossos avós. Foi sua resposta ao projeto de emenda constitucional do deputado Baleia Rossi (MDB-SP), que prevê a criação do imposto sobre bens e serviços (IBS), uma espécie de IVA. Sua base é o estudo realizado pelo Centro de Cidadania Fiscal, liderado pelo economista Bernard Appy.
Nenhum país cogitou de substituir o “avô” IVA por um imposto único sobre transações financeiras. Muito recentemente (2018) a Índia implementou um IVA moderno, em substituição ao caótico sistema de tributação do consumo. Estima-se que a medida tenha acrescentado dois pontos porcentuais ao PIB potencial indiano.
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Rocha defende o imposto único, por ele agora denominado e-tax. Para ele, “com uma economia cada vez mais uberizada, não faz sentido se cogitar uma tributação dos tempos das charretes”. Seu entusiasmo se baseia na ideia de que a revolução digital teria aposentado as formas tradicionais de cobrança de impostos. E isso poderia implicar, como se dizia antes, a extinção da Secretaria da Receita Federal.
A era digital está revolucionando o sistema de pagamentos e a forma de produzir, comprar e vender, mas os atos comerciais continuam os mesmos. As pessoas adquirem bens e serviços de consumo e investimento exatamente como antes, apenas de forma mais eficiente. As compras de pão, leite, vestuário, eletrônicos, automóveis e da ampla gama de serviços passaram a ser feitas mediante o uso de cartões de crédito ou débito, via comércio eletrônico e pelo uso de códigos QR. Mas, do mesmo jeito, elas continuam agregando valor em cada etapa do processo produtivo.
Acresce notar que nenhum país, nem mesmo os desenvolvidos e a China, onde se originou e evoluiu a revolução digital, e onde é vasta a produção acadêmica associada ao tema, até hoje tenha discutido a criação de uma e-tax. Eles não perdem tempo com ideias esfuziantes, mas injustificáveis e perigosas. Do lado federal, custa a crer que uma equipe econômica composta de liberais e ultraliberais apoie a recriação da CPMF. O próprio presidente rejeitou a ideia.
Por tudo isso parecem muito baixas, felizmente, as chances de vigorar a nova CPMF ou a barbaridade do imposto único.
Fonte: “Estadão”, 24/07/2019