Em abril de 2023, a Alemanha desligou seus três últimos reatores nucleares – ponto final de uma política iniciada em 2000, brevemente revista em 2010 e acelerada após Fukushima, em 2011. Os reatores eram Isar 2, Emsland e Neckarwestheim 2, que juntos somavam uma capacidade instalada de 4,2 gigawatts (GW), ou 6% da geração bruta alemã. O Atomausstieg não foi um gesto isolado, mas uma trajetória de mais de duas décadas, atravessada por disputas partidárias, decisões judiciais, arranjos federativos e uma cultura política moldada por memórias de risco. Entender esse percurso – como a decisão foi tomada e por que resistiu à reversão – é mais útil do que julgar seus efeitos em abstrato.
Democracias não costumam errar por um único impulso. Enganam-se por acúmulo: escolhas defensáveis em separado que, empilhadas, criam vulnerabilidades. No caso alemão, a saída nuclear resultou da convergência entre uma opinião pública sensibilizada por décadas de mobilização antinuclear, incentivos eleitorais de curtíssimo prazo e uma arquitetura institucional desenhada para produzir estabilidade. A estabilidade, porém, cobra um preço: uma vez firmado o consenso, a marcha à ré exige ainda mais acordo do que o necessário para avançar.
Fukushima funcionou como gatilho, não como causa. O terreno cultural já estava preparado por Chernobyl, pela retórica pacifista da Guerra Fria e pela ideia de Restrisiko – a percepção de que, mesmo improvável, o dano potencial de um acidente torna inaceitável qualquer risco remanescente. Com eleições regionais no horizonte e os Verdes em ascensão, a liderança federal tomou uma decisão politicamente compreensível: neutralizar o tema nuclear. Apenas duas semanas após o desastre de Fukushima, em março de 2011, o partido verde obteve uma vitória histórica nas eleições do estado de Baden-Württemberg, um reduto conservador por quase 60 anos. O sentimento antinuclear foi um fator decisivo no resultado.
Um consenso incomum se formou na Alemanha a partir de sua cultura de coalizões políticas. Os Verdes, fiéis à sua trajetória, impuseram o fim da energia nuclear como condição, e os demais atores se adaptaram. As grandes elétricas redirecionaram capital para renováveis após receberem uma compensação significativa do Estado – um acordo de €2,4 bilhões (R$ 18,5 bilhões em valores atualizados), selado após uma decisão do Tribunal Constitucional em 2021, para cobrir perdas de investimento e produção -, enquanto os setores eletrointensivos, pressionados por custos, optaram por importações e contratos para não travar uma batalha pública perdida. Diferentemente da França, um país onde a energia nuclear é ativo estratégico, na Alemanha nunca houve uma aliança pró-nuclear com força política e técnica para reverter a decisão.
Os arranjos institucionais completaram a cristalização. O federalismo distribui competências cruciais pelos Länder (governos estaduais); com os Verdes fortes em estados-chave, a Câmara Alta (Bundesrat, que representa o interesse dos governos estaduais) converteu-se em barreira natural a revisões. A judicialização, ao arbitrar compensações e reconhecer a legitimidade do Legislativo para ordenar o fechamento, elevou os custos de voltar atrás. A burocracia especializou-se em descomissionar, ajustar cronogramas, desfazer cadeias produtivas. Ao desmobilizar pessoas, rotinas e fornecedores, a decisão deixou de ser apenas política: passou a ser também material. O que se retira do sistema, cedo ou tarde, deixa de existir como capacidade disponível — inclusive a capacidade de reverter. Estima-se que o custo total para o descomissionamento dos reatores alemães e o armazenamento de longo prazo dos resíduos nucleares ultrapassará os €38 bilhões nas próximas décadas, um compromisso financeiro e logístico que cristaliza a decisão do phase-out.
Nesse processo, o debate público foi deslocado da linguagem das métricas para a linguagem da virtude. Uma discussão que deveria orbitar megawatts firmes, estabilidade de rede, intermitência, custo marginal, segurança do suprimento e exposição geopolítica cedeu lugar a um enredo moral, simples e mobilizador: nuclear seria risco inaceitável; renováveis, o caminho inevitável. Aqui, a diversidade de elites faz diferença – não apenas social, mas sobretudo de formação e trajetória (a chamada diversidade cognitiva). Juristas, economistas, administradores, engenheiros e cientistas precisam dividir a mesma mesa e disputar, com dados, o mesmo problema a partir de diferentes perspectivas. Sem essa mistura, a virtude se torna monoteísmo de ideias, e instituições concebidas para oferecer equilíbrio acabam servindo à rigidez.
Os resultados foram amargos. A retirada de capacidade firme de baixo carbono ocorreu antes de a alternativa estar madura. Isso ampliou a dependência do gás (inclusive importado da Rússia) e, em momentos críticos, exigiu maior uso de carvão. No primeiro semestre de 2023, após o desligamento dos últimos reatores, a geração de eletricidade a partir de carvão na Alemanha ainda representava mais de 25% do total. Estima-se que a eliminação da energia nuclear tenha gerado emissões adicionais de 35 a 70 milhões de toneladas de CO₂ por ano, um impacto que se traduziu em custos sociais de cerca de 12 bilhões de dólares anuais – impulsionados, em mais de 70%, pelo aumento do risco de mortalidade devido à poluição do ar.
No clima, a sequência importou: sem a âncora atômica, a mitigação ficou mais cara e mais lenta. Na economia, os custos de eletricidade subiram e comprimiram as margens da indústria eletrointensiva. Ainda assim, houve ganhos reais. A aposta maciça em renováveis criou escala, derrubou preços globais e forçou inovações em gestão de rede, armazenamento e resposta da demanda. Sucesso e custo podem coexistir na mesma história. A questão é o preço relativo e quem capturou os benefícios: a demanda subsidiada foi europeia; grande parte da manufatura que colheu os frutos ficou na Ásia.
O que um país como o Brasil – com hidroeletricidade abundante, gás em expansão, biomassa relevante, forte potencial eólico e solar e um programa nuclear modesto – pode extrair desse caso? Em primeiro lugar, a importância da ordem das coisas vale para além da eletricidade: políticas públicas pedem sequenciamento. Não se desativa uma capacidade, um arranjo institucional ou um mercado antes de existir substituto testado; preserva-se valor de opção, começa-se em piloto, mede-se e só então se escala. Transições bem-sucedidas combinam redundância, complementaridades e prazos realistas, evitando “saltos de penhasco”. Em seguida, entram as salvaguardas: cláusulas de revisão, metas mensuráveis, transparência de dados, auditorias independentes e janelas periódicas para correção de rota sem transformar ajustes em humilhação política. Também é insuficiente “contar com a opinião dos especialistas”; é preciso diversidade cognitiva e mecanismos formais de dissenso informado; pre-mortems, red teams e a obrigação de explicitar premissas, incertezas e cenários.
Nada disso pede unanimidade; pede método. Lideranças públicas precisam construir condições para decidir sob incerteza, preservar a possibilidade de revisão e proteger o dissenso qualificado. Não há desonra em reexaminar premissas quando o mundo muda; desonra há em confundir perseverança com obstinação.
O tema nuclear carrega símbolos, medos e memórias. É legítimo. Políticas de longo prazo devem combinar evidências, preferências sociais e instituições que aprendem – inclusive com erros. O Atomausstieg não é uma fábula de heróis e vilões: é um manual sobre como boas intenções, incentivos eleitorais e arranjos sólidos podem, juntos, produzir rigidez. O Brasil não precisa repetir esse enredo. Pode, com sobriedade, escrever outro: um em que a transição seja rápida, confiável e acessível – e em que as escolhas de Estado se façam com métricas à vista, dissenso protegido e portas abertas para reavaliar, quando necessário, o que a realidade demonstrar.