Você pode até desejar, do fundo do coração “gauchiste”, que o império americano seja um dia enterrado pelas forças populares globais. Mas, até que isso aconteça, a razão manda admitir que a boa saúde dos EUA é do interesse do Brasil e das demais nações. Os mercados sabem disso, claro. A Bovespa subiu forte na última terça, com as demais bolsas mundiais, na esteira de informações que confirmaram a recuperação da máquina americana.
A lógica começa bem simples. Se tudo correr bem, o consumidor dos EUA vai torrar no shopping mais de US$ 10 trilhões neste ano. Comprando o quê? Mercadorias “made in China”, certo, mas também produzidos no mundo todo, incluindo Brasil. Além disso, para montar o que vende nos EUA, a China importa matérias-primas e componentes do mundo todo — e roda a economia de novo.
Eis por que os investidores correram a comprar ações quando souberam que as vendas no varejo nos EUA, em fevereiro, haviam subido expressivamente. Além do mais, o fortalecimento da atividade econômica lá no império revigora o dólar, ou seja, valoriza as verdinhas em relação às demais moedas.
No outro lado, na Europa, a ação do Banco Central — emprestando caminhões de dinheiro barato para os bancos — e o bom andamento da reestruturação da dívida grega afastaram a ameaça de crise aguda por pelo menos três anos.
Portanto, boas notícias, certo? O problema é que esse panorama perturba o que se poderia chamar de “Pensamento Oficial Brasileiro Econômico” (Pobrecon), conforme tem sido exposto por diversas autoridades, a começar pela presidente Dilma. Não é que torça para isso, mas o Pobrecon, digamos, precisa de um agravamento da crise internacional para fechar sua lógica.
O Banco Central, por exemplo, sustenta que essa crise, ao derrubar o crescimento global, produz efeitos “desinflacionários” pelo mundo afora, Brasil incluído. Logo, ele, BC, pode reduzir a taxa básica de juros mais agressivamente. Já na versão do Palácio do Planalto e da Fazenda, o Pobrecon precisa do “tsumani monetário” global. Se os EUA e a Europa estão colocando tanto dinheiro barato no mercado, isso é uma nova modalidade de guerra cambial. Em outras palavras, os ricos estariam fazendo isso só para desvalorizar suas respectivas moedas, fortalecer suas exportações e, assim, arrasar a expansão dos emergentes que resistiram melhor à crise financeira de 2008/09.
Com isso, o Pobrecon justifica as medidas protecionistas, que bloqueiam importações e a entrada de dólares, aumentando preços internos e atrapalhando, por exemplo, as viagens de brasileiros que vão ao exterior em busca de produtos mais baratos e melhores.
O governo Lula ganhou muita popularidade com o dólar barato e seus subprodutos: consumo local estimulado por preços baixos e a “bolsa Miami”, a facilidade da nova classe média para estrear seu passaporte. Mas o mundo mudou, diz o Pobrecon, agora estamos em guerra e a culpa é dos ricos.
A ironia da história é que o “tsunami” está funcionando como esperavam seus autores. A enxurrada de dinheiro, a juros perto de zero, reequilibrou o sistema financeiro, afastou a ameaça de quebra de bancos e vai recompondo a concessão de crédito para empresas e consumidores. No primeiro momento, o tsumani derruba o valor de dólar e euro, espalha dinheiro barato pelo mundo. No segundo, a atividade econômica começa a engrenar de novo — e a “guerra” vai terminando.
Ora, se isso se confirmar ao longo deste ano e se a China desacelerar suavemente, mantendo ainda um bom nível de expansão, estaremos deixando para trás o ambiente sombrio de meados de 2011.
A boa notícia é que, mantida essa tendência mundial, o Pobrecon terá mais chance de alcançar sua outra meta, a de levar o Brasil a um crescimento de 4,5% neste ano. (Ou 5% se o mundo for favorável, como já disse o ministro Mantega).
A má notícia é que, se crescer isso tudo, a inflação também deve subir — como sempre acontece quando o país acelera — e isso atrapalha o outro objetivo do Pobrecon, que é colocar a taxa de juros lá em baixo. Também cria dificuldades para uma outra meta do Pobrecon, que é colocar o real acima de R$ 1,80 por dólar. Dólar caro, importações mais caras, financiamento externo mais caro, tudo isso é inflacionário e atrapalha a atividade econômica imediata.
Resumo da ópera: se tem guerra, os juros podem cair e o dólar subir, mas o país não cresce aquilo tudo. Se crescer, ajudado pelo fim da guerra, sobem a inflação e os juros, mas não o dólar. Mas vai ver que essa é a sacada do Pobrecon: relaciona tantos objetivos, tão diferentes e contraditórios, que pode cantar vitória qualquer que seja o resultado. Mas que deixa investidores e consumidores confusos, isso deixa. Talvez uma guerra de verdade ajudasse. Problema: quem vamos invadir?
Fonte: O Globo, 15/03/2012
O governo Lula não deu certo só porque o dolar estava barato. É uma afirmação temerária.Um dos motivos dessa performance foi a inimaginável-à época- liquidação da dívida externa e o consequente acúmulo robusto de reservas em dolar .Essas medidas foram duramente criticadas pelo brilhante articulista, feitor do texto acima. O próprio consumo interno, priorizado por Lula,idem. Naquele tempo era do receituário ficar dependente do FMI em rígido ajuste fiscal,pois isso apressaria a modernização do país.Aí eu pergunto em que situação o Brasi estaria, hoje,sem reservas e sem mercado interno?
A fatura da farra publicitária do governo Lula, com crédito fácil para consumo, bolsa miséria para consumo, crescimento sem retorno dos gastos correntes, etc, ainda vai chegar. Ou será que já está chegando? Passamos, aparentemente, bem pela crise de 2008, porque sofreu mais quem havia se envolvido mais com a fase das vacas gordas. Como usufruimos pouco, crescendo pifiamente, também sofremos menos e garganteamos mais.
Entretanto, a principal razão porque o governo Lula “deu certo” é não ter feito nada do que pregava antes de ser governo e poder surfar nos efeitos benéficos das reformas econômicas do governo anterior, que tanto combateu e tentou impedir.