Tragédias podem ter ao menos um efeito positivo: deixam lições. Quando há gente disposta, é possível aproveitar a dor para aprender, para melhorar, para crescer. Não é o primeiro incêndio de proporções trágicas em São Paulo, nem no Brasil.
Houve aprendizado nos incêndios dos edifícios Andraus e Joelma, nos anos 1970; Grande Avenida e Center 3, nos anos 1980; e, mais recentemente, do Teatro Cultura Artística e da Boate Kiss, em Santa Maria. O que este incêndio nos ensina?
Nos demais, as principais lições diziam respeito a medidas de segurança, como rotas para saída de emergência, materiais de construção não-inflamáveis, hidrantes, extintores e chuveiros automáticos.
O desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida traz uma lição de outra ordem. Era, reconhecidamente, um dos prédios mais inseguros da cidade, não tinha condição de abrigar um único morador, quanto mais as 372 pessoas das 146 famílias recém-cadastradas pela Prefeitura.
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O cenário interno poderia ser usado num hipotético manual perverso para a produção de incêndios de grandes proporções: materiais que disseminam o fogo, como divisórias de madeira ou a “pele de vidro” que revestia o edifício; lixo acumulado no poço do elevador, a exalar gases inflamáveis; ligações elétricas ilegais, espiriteiras e botijões de gás; ratos e esgoto correndo pelas escadarias escorregadias. Era, como qualificou o governador Márcio França, primeira autoridade a chegar ao local na madrugada, uma “tragédia anunciada”.
Felizmente, o trabalho heroico do Corpo de Bombeiros desocupou o prédio de 24 andares a tempo de evitar uma tragédia maior. As lições a aprender, portanto, nada têm a ver com engenharia de prevenção de incêndio ou com técnicas de combate ao fogo – mas tudo com política.
A primeira atitude a tomar é remover com urgência – se possível, hoje mesmo – quem vive em condições precárias nos imóveis invadidos, sobretudo no centro da cidade. Vítimas do oportunismo de movimentos de que dizem “sociais”, reféns da demagogia que considera a invasão ilegal um “mal menor” ou afirma não haver “alternativa” diante do “déficit habitacional”, são na verdade habitantes de um corredor da morte à espera da próxima faísca.
Há ao todo, segundo a secretaria da Habitação, cerca de 70 prédios invadidos no centro paulistano. Neles moram entre 3 mil e 4 mil famílias. Só para comparar: em 2013, eram 43. Ao todo, há 206 imóveis ocupados ilegalmente na cidade, abrigando 46 mil famílias.
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O plano de desocupação deve dar prioridade aos locais que correm maior risco. Prefeitura e governo do Estado sabem disso. Tanto que a torre de vidro que desabou era uma das prioridades. Houve pelo menos seis reuniões recentes na tentativa de desocupá-la, com representantes do movimento que cobrava, de cada família, entre R$ 200 e R$ 400 de aluguel, chamado (não sem alguma ironia) Luta por Moradia Digna (LMD).
A legislação brasileira é tolerante demais com esse tipo de criminoso. Dificulta tanto a reintegração de posse quanto a prisão daqueles que vivem da miséria e das brechas abertas pela omissão do poder público. Novamente, o prédio que desabou deveria figurar num manual perverso, desta vez jurídico, sobre como transformar a arte, a história e a arquitetura numa montanha de escombros e cadáveres.
Encomendado pelo empresário Paes de Andrade ao arquiteto Roger Zmekhol, pioneiro ao adotar o revestimento envidraçado, o Wilton Paes de Almeida foi inaugurado em 1966 para servir de sede à Companhia Comercial de Vidros. A igreja Martin Luther, sobre a qual o prédio desabou, foi a primeira igreja luterana de São Paulo, em 1908. Seus vitrais e obras de interesse artístico foram restaurados há pouco tempo.
Nos anos 1970, o prédio passou a ser propriedade da União. Foi sede da Polícia Federal em São Paulo por 23 anos, tombado em 1992 e abandonado nove anos depois. Houve tentativas de transformá-lo em polo cultural, campus da Universidade Federal de São Paulo e sede da secretaria de Educação.
Nada deu certo, pois o abandono deixara o imóvel em condições precárias. Em 2015, ele chegou a ir a leilão pelo valor absurdo de R$ 21,5 milhões, sem que ninguém se interessasse. Já era havia anos galinha morta. Naquele ano foi aberto um inquérito para apurar a segurança do prédio, arquivado em março deste ano pelo Ministério Público.
Mesmo alegando uma emergência sanitária, o poder público enfrenta dificuldade legal para retirar os invasores, protegidos pela garantia de inviolabilidade da moradia, manipulados por aqueles que têm interesse em aproveitar politicamente a tragédia habitacional.
As lições do episódio são, portanto, três: 1) a lei precisa permitir a desapropriação dessas propriedades abandonadas; 2) Prefeitura e governo do Estado precisam desocupá-las com urgência, para pôr em ação o plano de transformá-las em moradias com condições de segurança, paralisado desde 2012; 3) os responsáveis pelos movimentos que se aproveitam da omissão pública e da boa-fé da população devem ser presos pelos crimes que cometem. É o mínimo que o país tem obrigação de fazer em nome dos mortos na tragédia.
Fonte: “G1”, 02/05/2018