Quis o destino que Otavio Frias Filho morresse uma semana depois de Claudio Weber Abramo, ambos cedo demais, ambos levados pelo câncer, maior inimigo da humanidade depois dos males do coração.
Claudio, ex-matemático que se tornara editor da primeira página e que eu conhecera graças a meu interesse por matemática, foi o primeiro a me levar à redação da Folha de S.Paulo, recém-assumida por Otavio. Naquele momento, no início dos anos 1980, ia apenas entrevistar um jornalista para um trabalho de escola. Queria estudar matemática e jamais imaginaria que, dali a poucos anos, começaria a trabalhar como jornalista naquele lugar.
“Não entendo como você foi parar lá”, me perguntou Claudio mais de dez anos depois, quando tentava me tirar do jornal para outro emprego (na ocasião, recusei a proposta). A redação erguida e comandada sob o tacão de Otavio na Folha era conhecida como péssimo lugar para trabalhar.
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O regime de óbvia inspiração stalinista criava uma tensão permanente, um clima de eterna paranoia. Não havia horários nem limite, além dos biológicos, para quanto alguém podia ou devia trabalhar. “Na Folha, é assim”, era um argumento suficiente para encerrar qualquer discussão sobre qualquer assunto, da ortografia à astrofísica.
Chefes eram avaliados não tanto por talento jornalístico, conhecimento ou capacidade intelectual quanto pela disciplina no cumprimento das ordens superiores, emanadas em última instância dos memorandos ou comunicados assinados com as iniciais de Otavio, “OFF”.
“Se houvesse naquele tempo denúncias por assédio moral, estaríamos respondendo a processos até hoje”, comentava ontem um ex-secretário de redação com outro depois da cerimônia de cremação de Otavio.
Paradoxalmente, derivava desse clima a qualidade do jornalismo, preocupado obsessivamente em ser correto no relato dos fatos – notas na seção “Erramos” eram motivo de vergonha –, em ouvir o famigerado “outro lado” em todas as reportagens e em respeitar o padrão de texto imposto pelo Projeto Folha, nem sempre correto segundo a gramática, nem sempre belo segundo a estilística – mas sempre claro e objetivo segundo a “jornalística”.
O modelo crítico – notícia era sempre má notícia, tanto que criaram uma seção “boa notícia” para compensar –, pluralista, independente e apartidário imposto pelo Projeto Folha deu forma ao jornalismo profissional que, depois da redemocratização, espalhou-se pela imprensa no Brasil.
Embora o país já tivesse registrado várias iniciativas de manter distância das fontes e independência editorial – com destaque para O Globo de Roberto Marinho e O Estado de S. Paulo de Júlio de Mesquita Filho –, elas eram exceção. Foi a Folha dos anos 1980 que transformou as práticas que definem o jornalismo no mundo todo em padrão no mercado brasileiro.
Depois do Projeto Folha, não haveria mais jornais flagrantemente partidários, como a Última Hora de Samuel Wainer ou a Tribuna da Imprensa de Carlos Lacerda. O responsável pelo passo pioneiro na consolidação do jornalismo profissional no Brasil foi Otavio – e isso bastaria para lhe garantir um lugar na nossa história.
As ideias essenciais, ele aprendera com Claudio Abramo, o pai de Claudio Weber, preceptor de Otavio como jornalista na Folha dos anos 1970. Claudio (o pai) fora responsável por implementar o padrão de jornalismo no Estado no final da década de 1950. Trazido para a Folha, transformou-a no jornal sério que Otavio levaria ao auge. Apresentou-o às melhores redações do mundo, como o New York Times, para prepará-lo a assumir a direção da Folha.
Uma vez no cargo, em 1984, Otavio promoveu a campanha das Diretas Já e, apesar da derrota, tornou a Folha, dali em diante, o veículo mais lido e temido em Brasília. Era o jornal que líamos em casa naquele início dos anos 1980, quando pela primeira vez entrei numa redação, e em cuja primeira página aparecemos, meu pai e eu, em meio à multidão que exigia democracia no comício do Vale do Anhangabaú. Foi também o jornal onde aprendi o ofício de jornalista.
Uma lição basta para entender o estilo de Otavio. Nos anos 1990, com menos de um ano de jornalismo, fui designado para cobrir uma reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), uma das obsessões de Otavio. O então presidente da SBPC, Aziz Ab’Sáber, atacara o ministro da Fazenda, Rubens Ricúpero, em entrevista que publicamos no primeiro dia da reunião.
Diante dos microfones, depois da abertura em Vitória, ele soltou um palavrão diante da reação de Ricúpero (me lembro de, incrédulo, ter conferido antes de publicar os termos exatos com Ricardo Lessa, naquela época repórter do Estado, hoje no comando do Roda Viva). Ab’Sáber ligou a Otavio não apenas para contestar a publicação do palavrão, mas para negar que tivesse dado a declaração original em “on”.
A entrevista estava gravada. Por determinação de Otavio, tive, no fim de semana, de transcrever novamente toda a fita, anotar todos os pedidos de “off” e marcar a extensão exata de tempo transcorrido entre eles e a declaração sobre Ricúpero. Perdi horas preparando um relatório detalhado, que considerava àquela altura uma mera formalidade para justificar minha demissão.
Depois de entregue e lido pelo secretário de Redação e pelo editor-executivo, fui chamado à sala de Otavio. Meu relatório e a fita comprovavam que Ab’Sáber tinha mentido. Em seu tom de voz baixo e pausado, o olhar determinado atrás dos óculos de aro escuro, a gravata também escura sobre a camisa alvíssima, o jeito metódico a girar o lápis para o alto e catá-lo com a mão esquerda (ele era canhoto), sem errar uma única vez, Otavio me deu parabéns pelo relatório. E proferiu uma lição que depois repeti a vários jornalistas que chefiei:
– Não é porque alguém, em tese, está do “lado do bem”, que deixa de mentir quando se trata de defender o próprio interesse. O importante é descobrir a verdade.
Mesmo tendo recusado a oferta de Claudio, decidi deixar a Folha algum tempo depois. Otavio ligou para minha casa (não havia celular). Disse que estava chateado, mas entendia a decisão. Respondi que jamais esqueceria tudo o que havia, apesar de todas as dores, aprendido naqueles anos.
Foram minha escola.
Uma escola cujos mestres, como Otavio ou Claudio, aos poucos se vão, vítimas do câncer ou de outros males, enquanto os que restam se veem às voltas com os desafios urgentes da era digital, o desmoronamento de negócios editoriais antes sólidos e campanhas difamatórias contra o jornalismo profissional promovidas por calhordas, escondidos sob o anonimato das redes sociais.
Uma escola cujas lições foram resumidas do modo preciso e feliz pelo pai comum a Claudio (biológico) e Otavio (profissional), Claudio Abramo, ao definir o jornalismo como “o exercício diário da inteligência e a prática cotidiana do caráter”. Cabe a nós e às futuras gerações preservá-las.
Fonte: “G1”, 22/08/2018