Deus manda chamar São Pedro em sua sala. O todo-poderoso aparenta grande irritação. A vista de sua imensa janela, o Rio de Janeiro, está um caos. Chove há 24 horas ininterruptas. São Pedro pede licença e entra com olhar cabisbaixo, já prevendo o que vem pela frente. Deus o interroga de forma direta: “Quem mandou você fazer isso?!”, diz apontando para a janela. O velho Pedro, um pouco choroso, diz que não fez nada. Alega que há muito tempo não tem gerência sobre o curso das chuvas. “São as mudanças climáticas Senhor! É tudo culpa delas! Eu não posso fazer nada…”, diz o velho Pedro. Deus, então, esbraveja: “Como assim não pode fazer nada?!”.
Luís Inácio Lula da Silva, nosso presidente, teve o azar de estar no Rio à época do caos. Veio para entregar medalhas aos talentos da matemática. Interrogado por jornalistas limitou-se às lamentações. Estava com um rosto triste, vestido em um terno preto impecável. “Nunca antes na história desse país choveu tanto!”, disse em tom de grande lástima. Fez um minuto – rigorosamente cronometrado – de silêncio em homenagem aos mais de 90 mortos. Fez também questão de prontificar os recursos do governo federal. Enviou 60 – sessenta! – homens da Força Nacional para o Estado. Nosso comandante em chefe é mesmo um cara muito generoso.
Sérgio Cabral, governador do Estado, esteve nos principais telejornais, por telefone, dando explicações. Ou tentando dar explicações. Sua voz aparentava confusão. Números desencontrados lhe eram repassados pelos seus assessores. Não sabia ao certo o estado da cidade. Fez, entretanto, questão de ressaltar os investimentos feitos no corpo de bombeiros e na defesa civil. “Estão todos bem aparelhados, bem equipados!”, disse em tom decisivo. Além disso, colocou a culpa nas fortes chuvas: “É o maior índice pluviométrico das últimas décadas!”, disse novamente em tom decisivo.
Eduardo Paes, o prefeito, foi sincero, ao menos. Não se esquivou da culpa. “É claro que a prefeitura tem sua parcela de culpa. Não podemos colocar tudo na conta das chuvas ou das gestões anteriores”, disse em tom bastante eloqüente. Ele e sua equipe, os homens de capa amarela, deram uma entrevista coletiva ao final do dia. O prefeito aparentava cansaço. Sua voz era irritada, seu semblante era de exaustão. Não é fácil ser síndico do Rio de Janeiro.
A população está catatônica. Um pânico generalizado toma conta da cidade. Serviços públicos básicos, como luz, telefone e transporte estão aos frangalhos. Os pontos de ônibus estão todos lotados. A ida para casa é uma tortura, um grande e imenso transtorno. As ruas estão alagadas. A Praça da Bandeira parece mais um rio. A Lagoa Rodrigo de Freitas invadiu a Borges de Medeiros.
Deus não acredita no que vê por sua janela. A cidade está caótica. Quase tudo está tomado por água. Chove sem parar por mais de vinte quatro horas. Várias encostas desabaram. Casas e ruas viraram um emaranhado de lama. Centenas de famílias estão desabrigadas. Muitos perderam a vida. E não se pode fazer nada. “Como assim?”, não acredita o que vê o todo-poderoso.
Especialistas vão aos telejornais dar conta do que aconteceu e do que fazer para que isso não mais aconteça. Nas tragédias todos parecem saber o que fazer. É preciso que existam galerias pluviais, é preciso ensinar a população a não jogar lixo nas ruas e, o mais difícil, é preciso desocupar as áreas de risco. Toda essa lista de coisas parece emergir em um consenso transparente e inacreditável. Tudo, agora, parece fazer sentido.
Entretanto, quando o sol sair, todos sabem que pouca coisa acontecerá. As obras de infra-estrutura que melhorariam o escoamento das chuvas não acontecerão. Os bueiros continuarão tomados por lixo, pois a população não aprenderá a jogá-lo nas lixeiras. As encostas continuarão ocupadas, porque é impraticável remover milhares para lugares planos. Os políticos que hoje aparecem nos telejornais sem saber o que fazer continuarão sendo eleitos, porque a população continuará a votar de forma equivocada. Tudo, enfim, ficará como era antes.
E por que sabemos disso? Porque basta um olhar, mesmo que míope, para a História. Somos uma sociedade que não gosta de resolver problemas. Somos um povo que joga a sujeira para debaixo do tapete, na vã esperança de que os convidados não notem. Não conseguimos nos mobilizar para construir uma cidade ou um país melhor. Esbravejamos contra os políticos, mas não notamos que somos nós que os elegemos. Reclamamos do lixo nas ruas, mas não percebemos que somos nós que o colocamos lá. Matemos o status-quo, porque dá trabalho modificá-lo.
Mas há, é claro, os otimistas. Aqueles que acreditam que agora vai. Afinal, agora é tudo nosso: Copa do Mundo e Olimpíadas! Dessa vez o poder público não poderá escapar de suas responsabilidades. Não poderá culpar São Pedro – coitado do velho barbudo. “Dessa vez algo tem que ser feito!”, gritam os otimistas.
Será? Será que é preciso sediar eventos desse porte para termos uma cidade melhor? Será que precisamos gastar rios de dinheiro na construção de estádios para termos ruas que suportem o curso das chuvas? Será que precisamos construir vilas olímpicas para termos galerias pluviais? Será mesmo, caro leitor, que precisamos de uma desculpa desse porte para melhorarmos o bem-estar de todos nós?
Se isso for verdade, então, estamos todos perdidos. Porque se precisamos sediar eventos desse porte para termos uma melhor infra-estrutura urbana, não temos condições de sermos um país. Somos, enfim, um amontoado de pessoas que por acaso estão no mesmo lugar, mas não tem nenhuma identificação. Somos, e isso é preocupante, um projeto de Nação que não deu certo.
Queremos isso? Provavelmente não. Ninguém em sã consciência pode concordar com isso. Você, leitor amigo, provavelmente está indignado com tudo o que viu e ouviu sobre o caos no Rio de Janeiro. Mas, pergunto, o que fará? Parará de jogar lixo na rua? Prestará mais atenção na hora de eleger nossos governantes? Estará vigilante a eles? Mobilizará outros iguais a você? Lutará para termos uma cidade e um país melhor? Das suas respostas, e somente delas, depende o futuro de todos nós. Pense bem no que irá dizer.
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