O que há em comum entre as milícias digitais investigadas no inquérito das fake news e a cultura do cancelamento que ameaça empregos e reputações por pequenas transgressões do discurso? Ambos são fenômenos das redes sociais, e isso não é coincidência.
Tudo nas redes convida ao pensamento de rebanho, à polarização e à perseguição de “infratores”. E não por culpa de algum algoritmo insidioso criado pela ganância empresarial que poderia ser facilmente mudado.
O buraco é mais embaixo: são tendências da própria natureza humana que encontram nas redes espaço para se desenvolver.
Infelizmente, ao contrário do que os otimistas acreditavam, a internet não produziu uma maravilhosa ágora universal de debate racional que nos leva à verdade.
E isso porque a mente humana não busca a verdade; ou não apenas a verdade.
Ela trabalha incansavelmente para confirmar aquilo em que acreditamos e negar o que lhe contraria. Se nos oferecem uma abundância de dados e fatos —é o que a internet fez— isso não nos leva a atualizar nossas crenças e corrigir erros. Essa abundância permite que, com muita facilidade, selecionemos os pedaços de informação mais convenientes para reforçar nossas crenças prévias.
As redes sociais intensificam essa tendência ao colocar a ambição individual por fama a serviço dessa tendência. Afinal, as pessoas irão curtir e compartilhar aquilo que reforce suas crenças pré-existentes.
Se faço um texto ponderado, apontando lados bons e ruins de uma posição, isso gera incômodo e ninguém compartilha.
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Agora, se jogo desavergonhadamente para a plateia, reafirmando suas crenças e preconceitos, o sucesso vem muito mais fácil.
Entre direitistas, ganha mais quem reafirmar posições de direita em estado puro, sem matizes. Idem para a esquerda. E assim todos caminham para versões mais radicais.
Essa regra vale também para outro passatempo favorito da humanidade: atacar inimigos. A identidade de qualquer grupo é em boa medida definida pela oposição entre quem está dentro e quem está fora dele. Quem ataca os inimigos do grupo adquire reputação. Quem ousar ver pontos positivos neles colherá desprezo. Assim, o ódio tende a crescer.
Outro ponto: não há qualquer limitação no tipo de conteúdo que pode circular.
Antes das redes sociais, a maior parte da informação que chegava até nós passava por algum crivo institucional. Hoje não existe mais controle.
Uma informação falsa inventada com a pior das intenções circula livremente por dias até que algum órgão profissional identifique e forneça uma correção. E nesse momento novas mentiras já foram criadas.
Para completar, a interação a distância dá mais espaço à fantasia negativa sobre o outro: é muito fácil projetar más intenções em alguém com quem me relaciono apenas por meio de textos.
Da mesma maneira, o custo de ser desagradável, agressivo e simplesmente mal-educado é muito menor nas redes sociais. Permito-me ir até uma pessoa que não conheço para ofendê-la, algo que jamais faria se a encontrasse na rua.
Indivíduos e grupos que, conscientes dessa tendência à radicalização nas redes, se organizam para criar e promover conteúdo difamatório e discurso de ódio ameaçam a democracia.
Mesmo que consigamos debelar essas condutas criminosas, contudo, a dinâmica perversa das redes ainda trará desafios para nossa ordem política. A rede social não é ágora, e sim arena.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 4/8/2020