O mundo dá voltas. E que voltas. Fosse sindicalista hoje no ABC paulista, Lula estaria concluindo uma faculdade e, quem sabe, até planejando fazer pós-graduação. A dedução provém do exemplo dado pelo atual presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, Sérgio Nobre, formado em Relações Internacionais e com plano de continuar a trilhar os estudos na academia. As curvas que o mundo dá flagram contrastes que deixam estupefatas as mentes mais inovadoras. Quem poderia imaginar, por exemplo, uma onda de greves fazendo tempestade na China e a bonança amainando os mares do sindicalismo brasileiro neste ciclo eleitoral, que é o mais convidativo às intempéries? Pois essa é a radiografia da esfera do trabalho nesses dois países que integram o Bric, a China, a maior população mundial e que se prepara para ser a segunda economia do planeta, e o Brasil, que ambiciona chegar ao quinto lugar em menos de uma década. O redesenho que ocorre no cenário trabalhista nas duas nações abriga um feixe de conjunções, mas uma delas é seguramente a alavanca principal das mudanças: a força do capital.
A China faz questão de atribuir os êxitos de seu extraordinário crescimento econômico ao que chama de “economia de mercado socialista”, que nada mais é que a adoção de mecanismos próprios do capitalismo sob um sistema autoritário, no qual não funcionam as ferramentas das democracias ocidentais, como eleições abertas, separação de Poderes, imprensa livre, preservação de direitos individuais e sociais, etc. Apesar disso, o país não consegue conter a pressão sobre a base do edifício do trabalho e que tem como alavanca o capital, fator que move e direciona as economias contemporâneas, seja qual for o regime político. Gigantes da produção enfrentam ali ondas de greves por aumento de salários. A maior fabricante de produtos eletrônicos do mundo, a Foxconn, elevou em um terço o salário de seus 600 mil trabalhadores e a japonesa Honda, para administrar quatro grandes greves, teve de dar um aumento de 45%, elevando a remuneração para 1.420 yuans (R$ 370, bem menos que o salário mínimo brasileiro, de R$ 510). Chama a atenção o fato de que o território da mão de obra barata por excelência começa a mudar a identidade. Os 150 milhões de migrantes rurais do país ganharam incentivos do governo e, com a renda em alta, começam a se libertar da prisão dos salários precários. O esgotamento do ciclo da mão de obra barata na China já é algo que a vista alcança.
Se é arriscado apostar na tese de que a mais forte nação emergente – e socialista – se curva aos domínios do capital, é razoável supor que a barreira imposta aos mecanismos que dão vida às democracias deixa uma fresta para o respiro social dos ares trabalhistas. Tal escape tem que ver com a válvula da panela de pressão. Não existisse para deixar vazar o vapor, a panela poderia estourar. É preciso convir também que a China faz esforço para se integrar à nova ordem imposta pela sociedade pós-industrial, na qual se abrigam fatores como a expansão desenvolvimentista, o fomento dos setores produtivos, a garantia de postos de trabalho para sustentar populações economicamente ativas e contingentes de aposentados, o incentivo à produção de alimentos e a crescimento dos setores de serviços. A conjunção desses elementos implica menores disparidades sociais, supressão de antagonismos de classes e arrefecimento das facções ideológicas. Por mais que a China proclame sua devoção ao socialismo, não resiste a participar do jogo do mercado, em especial o do tabuleiro do capital e o da mesa dos investimentos. Para não se isolar, o país tem de se ajustar aos parâmetros de uma nova ordem, que busca de maneira incessante meios para atingir a aspiração maior de suas populações: o bem-estar.
Se a China se movimenta em direção ao ponto da roda onde se encontra a praça capitalista, o Brasil, sob a égide das liberdades democráticas, já passeia por ela há bom tempo. Da década de 70 – quando Lula, o metalúrgico, exibia na camiseta a exclamação “hoje não tô bom”, expressa por um carrancudo João Ferrador – aos nossos dias, este país deu um giro de 360 graus. Se o regime militar carecia de logotipia revolucionária para simbolizar o contraponto, a redemocratização eliminou excessos e buscou acalmar o espírito social. A barba desgrenhada e as feições de quem estava pronto para entrar no ringue deram lugar a um perfil bem arrumado. A estética ganhou o refino dos melhores salões. E a semântica, apesar de ainda incorporar parcela da linguagem das ruas, apurou significados para corresponder ao novo perfil. Luiz Inácio ganhou o status de mais alta autoridade do País. E transformou o berço que lhe deu fama em gigantesca cama do sindicalismo. Centrais sindicais ganharam posição legal e munição financeira, tomaram conta das relações do trabalho, produziram um dicionário de costumes. Foi assim que o sindicalismo passou a tecer o cobertor que cobre as relações entre o capital e o trabalho e que tem como lema: trabalhadores ganharão mais se as empresas aumentarem a produtividade e os lucros.
Por isso o grevismo tem de ser contido. As conquistas em série passam a ser preservadas e expandidas com a tinta da caneta que jorra forte dos tinteiros das fontes instaladas no Planalto. Sob essa fortaleza, a base sindical no ABC de Lula alargou-se e é a maior em 15 anos, conforme esclarecedora matéria de Marcelo Rehder neste jornal (25/7). A mobilização das categorias incorpora novas motivações. E bloqueios de fábricas podem sinalizar contrariedade e borrar a imagem do governo. Em seu lugar, o clima de harmonia imanta o conceito da administração. E assim avançam os núcleos trabalhistas. Satisfeitos e endinheirados. À procura de novos horizontes. Agora é a mídia que funcionará como tuba própria de comunicação. Em breve os trabalhadores verão sua primeira emissora de televisão, a TVT. O Estado-espetáculo chega, fosforescente, ao mundo do trabalho.
(“O Estado de S. Paulo” – 01/08/2010)
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