A história estava esquentando havia um bom tempo na Síria. Em abril, o chanceler do Conselho Nacional Sírio, Bassma Kodmani, escolheu palavras certeiras para definir o que se passa no país: “Com a promessa de trégua, Bashar Assad fez o mundo de bobo. Tempo é sangue hoje na Síria”.
Em maio, a Anistia Internacional acusou o país de crimes contra a humanidade, ante a tortura e o assassinato de opositores e manifestantes pacíficos. Em junho, observadores das Nações Unidas foram alvo de tiros na Província de Hama, enquanto o diplomata Kofi Annan via naufragar suas esperanças de um plano de paz para o país.
No início de julho, o general Manaf Tlass, oficial de alta patente do Exército e amigo de infância do ditador, desertou e passou a pedir apoio para uma transição democrática para o país. O diplomata Nawaf Fares, embaixador da Síria no Iraque, também debandou: “Peço aos membros do Exército para se juntarem à revolução. Direcionem suas armas para os criminosos do regime”.
No domingo passado, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha declarou estado de guerra civil no país, onde os confrontos já se alastraram além das fronteiras de Hama, Homs e Idlib. Desde o início da revolta contra a ditadura do presidente Bashar Assad, há 16 meses, mais de 17 mil pessoas morreram – a estimativa é do Observatório Sírio de Direitos Humanos.
Agora, o regime sírio enfrenta o mais grave revés. Na quarta-feira, um atentado em Damasco matou três oficiais da alta cúpula: Daud Rajiha, ministro da Defesa, Asef Shawkat, vice-ministro, general e cunhado do presidente, e Hassan Turkomani, ex-ministro da Defesa. O Exército Livre Sírio assumiu a autoria dos ataques. Um dia depois, 20 mil sírios haviam fugido do país, temendo a artilharia pesada da repressão. Na sexta, Hisham Ikhtiyar, chefe da segurança nacional, também ferido no atentado, não resistiu e morreu.
Rumores saídos de Damasco sobre a queda iminente de Assad rapidamente se espalharam. “É o começo do fim”, diziam. No entanto, e apesar da instabilidade crescente, China e Rússia vetaram a proposta de sanções do Conselho de Segurança das Nações Unidas pela terceira vez. Passou apenas a resolução 2059, que prorroga a missão de observadores na Síria por 30 dias, prazo considerado “final” pelos Estados Unidos e seus aliados europeus. “Uma intervenção estrangeira prolongaria o conflito e pavimentaria o caminho para proxy wars (guerras delegadas) no território sírio. A revolução deve ser batalhada e vencida por dentro, para garantir sua legitimidade a longo prazo”, considera a intelectual Marwa Daoudy. “Assad se agarrará ao poder e lutará até o último minuto, e pode ter um amargo fim”, avalia.
Cientista política nascida na Síria, Marwa Daoudy se mudou para a Suíça na adolescência, há 25 anos. Agora, na casa dos 40, já fez diversas peregrinações intelectuais. Pós-doutora pela School of Oriental and African Studies, da Universidade de Londres, passou por Harvard, Sciences Po e Université Libre de Bruxelles, entre outras universidades.
Em setembro de 2010, tornou-se professora do Departamento de Política e Relações Internacionais do Oriente Médio na Universidade de Oxford, na Inglaterra. Neste ano, foi professora visitante do Woodrow Wilson School of Public & International Affairs, de Princeton, nos Estados Unidos. Paralelamente à atividade acadêmica, é conselheira política das Nações Unidas para negociações de paz no Oriente Médio.
Além das andanças pelo mundo, a scholar voltou diversas vezes à terra natal, Damasco, não mais depois de novembro de 2010. Isso porque, em março de 2011, quando os ventos da Primavera Árabe começaram a soprar no país, ela foi alertada de que o regime estava de olho nas suas críticas publicadas pela imprensa internacional. Agora, observa e analisa os acontecimentos políticos na Síria a partir do front diplomático. “Estamos testemunhando um novo capítulo da Primavera Árabe”, diz.
Apesar do desfecho ainda incerto do cerco a Assad até a noite de sexta-feira, a analista arrisca: “Assad cairá. A questão é: quando? E derrubado por quem?” De Genebra, Marwa Daoudy conversou com o Aliás.
Estado – Como interpretar os acontecimentos da Síria nessa semana? O que se pode esperar?
Marwa Daoudy – A operação foi decisiva. Ao mirar a sede da Segurança Nacional em Damasco, os rebeldes acertaram o coração do regime, matando o terceiro homem mais poderoso do país, o general Asef Shawkat, cunhado do presidente. Esse é o começo do fim para Bashar Assad, como quer a oposição? Não sei. Mas não acredito que o regime vá entrar em colapso nos próximos dias. Acredito que Assad se agarrará ao poder e lutará até o último minuto, e pode ter um amargo fim. Até lá, haverá ainda mais violência na Síria, confrontos entre os insurgentes armados e o Exército do regime espalhados por todo o país. No entanto, as batalhas travadas na capital são decisivas e representam uma reviravolta. A vulnerabilidade do regime foi exposta pela primeira vez.
Estado – Nos últimos dias, Assad perdeu o apoio de militares e diplomatas. O presidente está sendo abandonado?
Daoudy – As deserções estão aumentando, principalmente a partir da postura assumida pelo general Manaf Tlass. E aumentarão, com peso significativo, sobretudo após o atentado rebelde na quarta-feira. O fato de que os insurgentes foram capazes de matar oficiais do alto escalão das forças armadas alavancou a resistência e encorajou militares a abandonar o barco. Entretanto, a elite militar, constituída pelos alauitas, próximos do poder, continua leal a Assad.
Estado – O presidente pode usar armas químicas?
Daoudy – Na minha temporada nos Estados Unidos, ouvi de fontes militares que os americanos e os israelenses já estavam se preparando para a possibilidade de a Síria usar armas químicas. Mas em minha opinião o regime está muito relutante em usá-las, porque sabe que isso detonaria a condenação imediata da comunidade internacional. Se o governo apelar para as armas químicas, será realmente o último dos últimos recursos. E seria suicídio, porque sabe que Estados Unidos e Israel estão em alerta. Se Assad usar as armas, perderá o apoio da Rússia e abrirá as portas para a intervenção na Síria. Seria uma ação totalmente irracional. Na minha opinião, não há risco iminente de Assad lançar mão desse recurso. Mas quem sabe o que o regime desesperado faria para sobreviver? Além disso, se os israelenses decidissem atacar, as consequências ultrapassariam as fronteiras sírias e chegariam ao Irã, o que certamente pavimentaria o caminho para a regionalização, se não a internacionalização, do conflito.
Estado – Qual é o papel das Nações Unidas nessa guerra civil?
Daoudy – A ONU pode aumentar a pressão sobre o regime, ampliando suas sanções – mas contra os oficiais do governo, seus movimentos e seus ativos (e não contra os recursos e fontes do país, o que provocaria mais impacto negativo na vida cotidiana da população). Não apoio uma intervenção militar estrangeira, seja votada pelas Nações Unidas, seja decidida fora dela. Uma intervenção prolongaria o conflito e abriria caminho para proxy wars no território sírio. A revolução deve ser lutada e vencida por dentro, para garantir sua legitimidade. Qualquer intervenção militar estrangeira, com tropas e força aérea, seria inaceitável e comprometeria uma transição pós-Assad. Custaria muito aos sírios no longo prazo. Claro, sem a intervenção, o preço também é alto – afinal, o regime está dizimando civis. Mas na minha perspectiva uma intervenção ampliaria o problema no tempo (a duração do conflito) e no espaço (as fronteiras), porque envolveria agendas políticas de outras potências. E não só a dos Estados Unidos, pois também temos atores regionais importantes como Israel, Irã, Catar e Arábia Saudita. Então a Síria se tornaria uma plataforma para interesses externos. Isso, na minha visão, poderia transformar a Síria em um novo Iraque. Mas será outra história se a revolução for vencida por dentro. E o que assistimos nessa semana é um indicativo de que isso pode acontecer, pois os rebeldes golpearam o coração do regime com armas e táticas próprias.
Estado – Como a sra. analisa o veto de China e Rússia a sanções no Conselho de Segurança?
Daoudy – Não foi surpresa. China e Rússia têm tomado continuamente posições contrárias à mudança de regime na Síria. Viram que a imposição de sanções, econômicas e diplomáticas, logo levaria a isso. Os russos também sentem que foram enganados no passado, com a operação na Líbia – na época, a questão foi redirecionada de “proteção a civis” para “mudança de regime”. E eles sentem que a situação pode se repetir na Síria, o que disparou um alarme para chineses e russos. Afinal, Rússia e China não querem que isso seja usado como precedente para futuras operações sob o mesmo pretexto de violações dos direitos humanos. A Rússia também está tentando preservar seus interesses estratégicos no Oriente Médio através das relações com a Síria. Atualmente, o jogo do poder é principalmente jogado contra os Estados Unidos, pois a Rússia quer mostrar que ainda tem voz no tabuleiro geopolítico.
Estado – Quais são os atores em jogo na resistência contra Assad?
Daoudy – Atualmente, há dois diferentes movimentos de oposição claros: a resistência pacífica e a insurgência armada. Mas é bom lembrar que a revolução começou como um movimento não violento a favor da justiça socioeconômica. No entanto, como civis, principalmente os desarmados, foram brutalmente torturados e sitiados por forças do regime, parte da população se deslocou para a insurgência armada para se defender. E, num certo ponto, percebeu que a defesa não era mais suficiente e partiu para a ofensiva. No plano militar, o Exército Sírio Livre emergiu como principal jogador. É formado por civis e soldados desertores, além de apoiado tanto pelos Comitês de Coordenação Locais (a rede de movimentos de oposição) quanto pelos movimentos de oposição externa, como o Conselho Nacional Sírio, e potências estrangeiras. Fontes de inteligência também mostram que existem cerca de cem grupos rebeldes operando no país, alguns ainda desconhecidos. E se acredita que jihadistas do Iraque se infiltraram nas fronteiras e estão operando contra as forças do regime – tentando transformar a revolução em uma revolução islâmica. Mas há ainda um ativismo não violento muito forte na Síria promovendo ações de “desobediência civil”. Por exemplo, mercados no coração de Damasco que não abrem suas portas como forma de protesto diante dos assassinatos. Mas agora os comerciantes desses mercados vêm sendo muitas vezes forçados pela polícia a abrir suas lojas, porque as forças do regime já sabem que se trata de desobediência. Então, essa tendência de oposição pacífica está ficando à margem. Com essa crescente complexidade da resistência, está ficando cada vez mais difícil identificar quem é quem entre os rebeldes.
Estado – Qual é o papel das mulheres na resistência? Há espaço para elas?
Daoudy – Sim, definitivamente. As mulheres são um dos principais pilares da sociedade civil síria. Elas efetivamente contribuíram para os levantes não violentos desde o início da revolução. E continuam sendo uma parte importante junto às comissões de coordenação locais e movimentos oposicionistas. A Síria é um Estado secular, muito relacionado à ideologia socialista progressista que promoveu os direitos das mulheres. Então, as mulheres estudam, trabalham e se destacam na política. Elas são ativistas, esposas, estudantes, irmãs, filhas, mães, profissionais, que emergem para contribuir com o esforço coletivo de resistência. Algumas inclusive pagaram um preço alto: os massacres em Homs, Houle e Tremesh visaram principalmente às mulheres e suas crianças. Muitas mulheres e garotas foram estupradas, como forma de reimpor o pavor e a vergonha em uma sociedade que já tinha se libertado do medo e da dominação. Apesar disso, a participação feminina continua forte – inclusive a de algumas antigas alunas minhas em Damasco. O futuro pós-Assad precisa reconhecer o papel das mulheres e dar a elas as posições merecidas na sociedade e na política.
Estado – Onde estão os intelectuais sírios?
Daoudy – Alguns tomaram uma posição revolucionária. Outros preferiram uma postura mais “prudente” contra as consequências não desejadas. Muitos escritores e pensadores condenaram as ações do regime e agora pedem uma transição política. O debate foca a trilha a ser percorrida para dar fim à crise. Deveria ser em diálogo com o regime? Ou deveria atravessar o regime comprometido por crimes e com muito sangue nas mãos? Apesar do autoritarismo do regime, a sociedade civil síria sempre foi muito vibrante. Ativistas de direitos humanos e intelectuais têm se mobilizado continuamente, e se fazem ouvir, através de petições e críticas em jornais libaneses e até sírios. Sim, foram atormentados, presos e torturados. Mas não desistiram. Muitos dissidentes históricos e intelectuais sírios, como Michel Kilo, Riad Turk e Riad Seif, continuam vivendo na resistência na Síria.
Estado – Que ecos da Primavera Árabe vemos na Síria agora?
Daoudy – Nós estamos realmente testemunhando um novo capítulo da Primavera Árabe, com esses desdobramentos na Síria. A Primavera Árabe definitivamente está lá. No entanto, depois de mais de um ano de levantes populares, a revolução na Síria ainda está lutando para conquistar o que pretende. Uma coisa é certa: as mudanças são irreversíveis. O regime certamente cairá. As questões que interessam agora são: como? Quando? E será derrubado por quem?
Fonte: O Estado de S. Paulo
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