Tramita no Senado a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 33/09, que restabelece a exigência de diploma em Comunicação Social, com habilitação em jornalismo, para o exercício da profissão de jornalista. Essa PEC surgiu no final do ano passado, logo após a decisão do Supremo Tribunal Federal que derrubou a obrigatoriedade do diploma, por entendê-la inconstitucional. O raciocínio que a inspira é bem simples: se a exigência do diploma era inconstitucional, basta, agora, inscrevê-la na própria Constituição e, assim, sua inconstitucionalidade cessará. Para tanto ela modifica o artigo 220 para fazer constar da Lei Maior o diploma obrigatório. Em tempo: a emenda já passou pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal e agora, para seguir em frente, depende da decisão do plenário.
Se aprovada a PEC, o diploma não será apenas obrigatório como era antes: ele será constitucionalmente obrigatório. Mas será que isso resolverá as indefinições que pesam sobre a profissão de jornalista? A resposta é não. A exigência ou a não exigência do diploma é um tópico secundário. O ponto mais grave, hoje como antes, é a definição desse ofício: em que consiste a profissão de jornalista? O diploma será obrigatório para o sujeito fazer exatamente o quê? Esse “o quê” é o ponto central.
Quanto a isso persiste uma confusão que compromete todo o resto. Ainda se acredita no Brasil que jornalistas e assessores de imprensa desempenham uma única profissão. Isso não faz sentido algum, nem aqui nem em nenhum outro lugar do mundo. Desconheço países de boa tradição democrática onde jornalistas se vejam como assessores de imprensa ou vice-versa. Ambas as atividades são essenciais e dignas, por certo, mas totalmente distintas uma da outra. No Brasil, no entanto, são vistas por muita gente como se fossem uma coisa só. Por que fomos cair nessa confusão?
A origem de tal embaralhamento vem da nossa cultura sindical. Como, historicamente, muitos jornalistas profissionais foram migrando, aos poucos, para as assessorias de imprensa, os sindicatos de jornalistas passaram a ter, entre seus associados, contingentes cada vez maiores de assessores. Para não perderem filiados esses sindicatos começaram a representar, de uma vez só, uns e outros. Nasceu assim uma teoria corporativista segundo a qual tanto os repórteres como os assessores de imprensa praticam “jornalismo”. Nada mais falso – e nada mais pernicioso para a compreensão do que significa a independência editorial como primeiro dever de todo jornalista. Se um assessor de imprensa é jornalista, a independência editorial deixou de ser um requisito para definição dessa profissão. De acordo com essa novíssima semântica, uma redação não precisa ser independente para realizar a função de imprensa.
Essa teoria se expressa de modo escancarado no Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). Venho sustentando há vários anos – e venho sustentando isso dentro da Fenaj, à qual sou filiado – que o nosso código está assentado sobre um conflito de interesses insolúvel. Dou aqui apenas dois sintomas desse conflito que o código não consegue – por mais que tente – ocultar.
O artigo 7.º, inciso VI, diz que “o jornalista não pode realizar cobertura jornalística para o meio de comunicação em que trabalha sobre organizações públicas, privadas ou não governamentais, da qual seja assessor, empregado, prestador de serviço ou proprietário (…)”. Note bem o leitor: o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros proíbe que, como repórter contratado de algum jornal, o jornalista escreva sobre o órgão em que também seja contratado como assessor, mas, e aí está o dado espantoso, o mesmo código admite que o jornalista mantenha duplo emprego, podendo ser repórter num jornal e assessor de imprensa num órgão público, ao mesmo tempo, como se isso fosse normal num regime de imprensa independente.
O outro sintoma: o artigo 12 afirma que “o jornalista deve, ressalvadas as especificidades da assessoria de imprensa, ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, o maior número de pessoas e instituições envolvidas em uma cobertura jornalística”. Nesse artigo o código confessa que a ética jornalística não vale sempre, do mesmo modo, para os assessores: os primeiros têm o dever de ouvir todos os envolvidos numa história; os segundos, não. Mesmo assim, a despeito dessa franca distinção, o código pretende valer para ambos os profissionais.
Vale repetir: o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros está assentado sobre um conflito de interesses. A Fenaj, a maior defensora da PEC 33/09, chama assessoria de imprensa de jornalismo. Sintomaticamente, outra vez, a Justificação da PEC, assinada pelo senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE), embarca na mesma lógica e corrobora a teoria de que o ofício da imprensa se estende por várias funções, “do pauteiro ao repórter, do editor ao planejador gráfico, do assessor de imprensa ao fotojornalista”. Segundo essa lógica, enfim, a assessoria de imprensa, assim como o fotojornalismo ou o planejamento gráfico, é função jornalística.
O maior dano causado por essa teoria é a diluição do conceito de imprensa independente. Essa lógica não realça a função social de fiscalizar o poder que só o jornalismo independente pode realizar. Jornalistas trabalham para que as perguntas que todo cidadão tem o direito de fazer sejam respondidas, enquanto assessores trabalham para que as mensagens que seus empregadores ou clientes gostariam de difundir sejam divulgadas. Essa distinção deveria ser explícita dentro da própria Fenaj e dentro do Congresso Nacional. Aí, sim, saberíamos com segurança para que atividades a Constituição passará a impor o diploma obrigatório.
Fonte: Jornal “O Estado de S.Paulo” – 09/09/10
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