Em um ano, 868 mil brasileiros passaram para essa categoria de ocupação, evitando que o índice atual de desemprego chegasse a 9,2%
O emprego tradicional, com carteira assinada e patrão, está perdendo terreno para formas mais precárias de ocupação. A falta de vagas no mercado de trabalho, que vem despontando com mais força neste ano, empurrou boa parcela dos brasileiros para os serviços por conta própria, normalmente mais voláteis, imprevisíveis e com menor remuneração.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE, mostram que, entre março do ano passado e março deste ano, 868 mil pessoas passaram a trabalhar por conta própria, ampliando para 21,773 milhões o contingente nessas condições. Na contrapartida, 740 mil pessoas perderam a condição de empregados, restando um saldo de 46,1 milhões de trabalhadores no setor privado, com e sem carteira assinada.
Não fosse essa substituição, somada ao aumento de 359 mil empregados no período, o índice de desemprego no país, que chegou a 7,9% em março, teria ultrapassado os 9%, calcula o pesquisador da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), Eduardo Zylberstajn.
“Se todas as pessoas que optaram pelos serviços por conta própria estivessem procurando emprego, a taxa iria para 9,2%”, diz Zylberstajn. Ele pondera que muitos podem ter escolhido esse tipo de trabalho mesmo sem terem sido demitidos, mas ressalta tratar-se, em sua maioria, de uma ocupação “mais volátil, imprevisível e que prejudica o rendimento familiar”.
Por um lado, essa situação contribuiu para que o saldo da população ocupada no primeiro trimestre deste ano em relação ao mesmo período de 2014 continuasse positiva – cresceu 0,8%, para 92 milhões de pessoas. Por outro, traz mais instabilidade e reduz o índice de confiança dos consumidores.
“Normalmente, o trabalho autônomo é mais precário que o emprego. O fluxo de rendimento é menos previsível, há uma incapacidade de projetar o futuro, de comprovar renda e, portanto, de obter crédito. É uma regressão”, afirma o pesquisador da Fipe.
“Esse movimento não é o empreendedorismo como conhecemos; é um espelho da perda de ritmo da formalização”, diz Rafael Bacciotti, economista da Tendências Consultoria. “A pessoa sozinha ou com algum auxiliar começa um empreendimento como alternativa, já que o mercado de trabalho está muito ruim”, observa.
Para Zylberstajn, esse quadro “reforça a leitura de que o mercado de trabalho finalmente sentiu a desaceleração econômica que vem ocorrendo desde 2011”. Em sua opinião, o ciclo de deterioração do emprego deve se manter por um tempo considerável. “Com certeza, antes de 2016 não sairemos dessa situação”, prevê.
Marmitex– Por sete anos Ulisses Santoro rodou a cidade de São Paulo todos os dias em busca de clientes para a empresa de telecomunicações na qual trabalhava. Hoje, aos 50 anos, continua rodando por aí, mas numa missão diferente: fazer entregas de seu próprio serviço de marmitex e congelados.
“Hoje, meu raio de atuação é 1 quilômetro. Antes, era a cidade toda”, conta ele. Após ser demitido com outros colegas, no início de 2014, montou com a esposa Teresa o próprio negócio de delivery, chamado Mama Maria Refeições – uma homenagem à sogra. “Não sou o melhor marido do mundo?”, brinca.
O negócio funciona no próprio apartamento do casal, na Vila Mariana, zona Sul de São Paulo. Eles contrataram uma cozinheira e, aos poucos, passaram a investir em equipamentos, como freezers e uma balança de precisão. “No total, gastei uns R$ 3 mil. Nem precisou de tanto investimento, é mais coragem, porque você fica meio receoso”, diz.
A escolha da investida na área da alimentação não foi à toa. “Queria algo no ramo de comida, porque pode vir crise, pode parar a construção civil, o ramo de automóveis, pode mandar todo mundo embora, mas sempre alguém vai precisar comer.”
Ulisses afirma que, apesar de o negócio ainda estar no início, ele consegue um faturamento próximo ao que tirava como empregado. Para ele, no momento atual do mercado, pensar numa alternativa é necessário. “O sistema de aposentadoria, por exemplo, é pífio. As pessoas têm de se virar, pensar num plano B, seja qual for a profissão.”
Camisetas – Formada em moda, Renata Barbosa, que mora em Sorocaba (SP), não via grandes perspectivas na cidade para sua profissão.
“Aqui há apenas duas confecções grandes. Eu já passei por ambas, e tinha duas opções: ou trabalhava no comércio ou ia para São Paulo”, diz ela, que tem 33 anos. Renata foi para a capital em busca de emprego, mas o alto custo de vida a fez retornar a Sorocaba, onde migrou para o comércio.
Para complementar a renda enquanto trabalhava como vendedora de uma loja de roupas, começou a confeccionar camisetas estampadas para amigos. Por falta de tempo, teve de parar com o negócio. Em abril, porém, foi demitida do emprego. Com o dinheiro da rescisão, cerca de R$ 2,5 mil, decidiu investir de vez no ramo de camisetas.
“Comprei uma máquina, tecido e fiz parceria com a estamparia de amigos. Faço a modelagem, corto e costuro, além da arte da estampa”, diz. Renata não sabe ainda quanto vai obter de renda, e conta que tem vários amigos na mesma situação.
“Na semana que vem haverá um bazar só para esse tipo de coisa: terá brechós, gente com a própria marca de roupas, gente que faz bijuteria. Cada um está se virando como pode, porque este ano a economia está bem complicada”, diz.
Domésticos em alta– O desaquecimento do mercado de trabalho levou milhares de brasileiros a migrar para o trabalho doméstico. Segundo dados da Pnad Contínua do IBGE, 35 mil pessoas ingressaram na área de serviços domésticos nos primeiros três meses do ano. Na comparação com o primeiro trimestre do ano passado, o crescimento foi de 1,6% – foram 94 mil pessoas a mais no período. No total, existem hoje pouco mais de 6 milhões de empregados domésticos no País.
“É um movimento contrário ao que estava acontecendo anteriormente”, diz Rafael Bacciotti, economista da Tendências Consultoria Integrada. “A ocupação na área de serviços domésticos estava perdendo forças, pois as pessoas estavam buscando se qualificar minimamente para serem alocadas em outros segmentos, como o comércio. Agora, o cenário passa a ser desfavorável para esse tipo de mudança”, diz.
A formalização no serviço doméstico também aumentou, segundo a Pnad. No primeiro trimestre do ano, 32,3% dos trabalhadores tinham carteira assinada – pequeno avanço em relação aos primeiros três meses do ano passado, quando os formais representavam 31,5% do total.
Para ele, o avanço do setor ainda não pode ser considerado um reflexo da PEC das Domésticas, emenda aprovada recentemente pelo Senado que garante benefícios à categoria e incentiva a formalização. “A PEC pode dar alguma segurança, mas esse movimento está mais relacionado à perspectiva de piora no mercado de trabalho e à falta de oportunidades – o que também explica o aumento de pessoas que resolvem trabalhar por conta própria.”
Fonte: O Estado de S. Paulo
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