Talvez a palavra “autoritarismo” seja a mais adequada para caracterizar a nossa índole política. Veja bem: eu falo em caracterizar, e não em definir. Somos também anárquicos, malandros e lenientes — portanto, antiautoritários em certas situações, e tais comportamentos dependem de ideologias, partidos e pessoas. Sobretudo dos amigos, e daí vem, paradoxalmente, o problema da impunidade que impede castigar delitos flagrantes precisamente porque não julgamos os crimes, mas quem os praticou. Se o autor é um desconhecido, somos implacáveis e fascistas, mas, se é um amigo, ele tem a nossa condescendência e a nossa compaixão.
Afinal, falamos autoritariamente, mas sem perceber: “Este eu conheço! É pessoa de bem, tinha suas razões!”. O crime, como disse um dia o presidente Lula, foi cometido por meros (e inocentes) “aloprados”; e o mensalão foi uma trivialidade num sistema político recheado de corruptos. O problema é que a trama dos favores que une os poderosos é muito densa para não ser descoberta por algum maldito jornalista investigativo ou revelada por alguma rede ou câmara de televisão.
No Brasil, o crime hediondo e depravado é feito por quem não conhecemos; já o crime cometido por quem faz parte do nosso círculo de relações é um erro de cálculo ou um descuido. Donde o inocente e mendaz: “Eu não sabia…” Nosso autoritarismo ainda não entendeu que, numa democracia, somos simultaneamente construtores e habitantes de um mesmo teto!
O dado novo é a desmistificação do governante como uma pessoa predestinada e superior que pode tudo. Sobretudo roubar. E a questão hoje em dia não é mais de ter sido pobre ou das competências de como resolver os problemas, mas do modo pelo qual esses problemas serão resolvidos. No Brasil atual, nem Stalin ou Hitler teriam sucesso, porque o modo de governar está intrinsecamente ligado à roubalheira amistosa, vista como normal, aceitável e inevitável. O governar como um serviço e uma entrega baseada no resgate de valores, mais do que de rotineiras receitas técnicas, é o que está faltando neste nosso Brasil prestes a eleger um novo presidente.
É preciso liquidar com o autoritarismo do “todos fazem” e nós também fizemos, mas, infelizmente, a imprensa reacionária propagou de modo exagerado e ilegítimo o nosso delitozinho, inventando um “mensalão” petista que jamais existiu. O do PSDB é real, o nosso é fantasia reacionária. Por isso, tivemos que lutar para realizar uma revisão de todo o quadro legal e praticamente reformulamos as sentenças e a tese do julgamento.
Contra isso, só um temporal de ética que comece discutindo o personalismo. Esse personalismo que atribui mais responsabilidade às pessoas do que às questões que demandam a cooperação de todos para serem resolvidas.
Quem é a autoridade? Saber quem manda (ou é o “dono da bola”) é, sem sombra de dúvida, a questão que mais nos aflige. Competir com uma pessoa — usando argumentos pífios — é mais importante do que contribuir para resolver um problema crucial. Quando o mandão é obvio, não há problema. Mas, quando não existe consenso sobre quem é o mais importante, ficamos aflitos, e o conflito deflagra os bate-bocas mal-educados, visando à “desconstrução”, que são a primeira consequência do nosso desconforto com a igualdade.
No fundo, sempre achamos que as pessoas são mais importantes que os problemas e é exatamente isso que tipifica o personalismo que leva ao autoritarismo. Nele, o centro é sempre a pessoa, e elas são tão poderosas que frequentemente fazem com que os problemas (bem como as normas e leis) sejam esquecidos ou ultrapassados.
O dinamismo democrático conduz a uma troca de cadeiras. Se não fosse um exagero, eu diria que essa transparência e esse embaralhamento entre o público e o íntimo têm tido um efeito revolucionário de desmistificar precisa e paradoxalmente os revolucionários de plantão. É o que o nosso pífio programa eleitoral tem o dom de revelar. Nele, os batedores de carteira usuais surgem com clareza, mas é fascinante descobrir o fascismo aberto dos candidatos revolucionários para quem todo o mal do mundo é produzido pelos banqueiros. A satanização é um reducionismo absurdo.
Como contrapeso, porém, temos a campanha dilmista falando de um futuro governo aberto às forças do empreendedorismo, do lucro e do mercado que o PT sempre rejeitou, ao lado de uma visão francamente autoritária e contraditória relativamente ao papel da mídia. Ao jornal cabe informar! — diz a presidenta. E nós, na nossa luta para desmistificar o mundo público nacional, livrando-o dos seus sofismas personalistas, familísticos e autoritários, ficamos abestalhados com a revelação da índole (do geist, como diria um sociólogo alemão) deste governo que tem desmantelado o Banco Central, a Petrobras, os Correios e agora um impecável IBGE nesta ultima década, e que ainda quer mais tempo para prosseguir.
Fonte: O Globo, 24/09/2014.
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