Ao entrar com pedido de habeas corpus no Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4) com o objetivo de criar uma situação de fato que favorecesse um ex-presidente da República preso por ordem judicial, em julho, os idealizadores dessa estratégia agiram politicamente, uma vez que todos os recursos judiciais cabíveis na Corte já haviam sido rejeitados. Com seu ativismo estimularam a apresentação de mais de 250 pedidos padronizados de habeas corpus, nenhum deles acolhido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Um mês depois, a defesa técnica do ex-presidente pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) a retirada de um recurso em que pedia sua libertação, para evitar que sua inelegibilidade fosse julgada antes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
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Não analiso, aqui, o mérito da condenação do ex-presidente, mas a estratégia política e jurídica de sua defesa. E o ponto para o qual chamo a atenção está num risco que ela implica e não tem sido suficientemente discutido: o de banalizar o sistema de recursos processuais. Mais precisamente, o habeas corpus, instrumento decisivo na luta pela redemocratização do País, entre 1977 e 1978. Foram anos trágicos, em que Raymundo Faoro, então presidente da OAB, colocou o peso da entidade no esforço pelo restabelecimento do habeas corpus, para que cidadãos não fossem presos nas ruas sem identificação da autoridade e levados aos porões dos órgãos de repressão da ditadura militar para serem torturados. “O mínimo é a libertação do medo de que a Declaração dos Direitos Humanos fala. Essa é a condição mínima para a convivência política. Quem vai verificar o habeas corpus é a magistratura, que queremos que seja independente, e não dependente do arbítrio do Ato Institucional n.º 5”, disse Faoro, em resposta ao convite que lhe fora formulado pelo governo Geisel para dialogar sobre uma eventual abertura política. “Não queremos que a coragem do juiz seja um atributo pessoal. Deve ser uma garantia da sociedade, da nação, atribuída a ele em benefício da própria comunidade. Para nós, isso é quase um dogma”, concluiu.
Na circunspecta simplicidade dessas declarações está implícito que a continuidade da luta pelo retorno à democracia deveria ser o objetivo prioritário da sociedade civil como padrão de convivência coletiva fundada nas liberdades públicas. Como o AI-5 era uma “pistola engatilhada”, afirmava Faoro, sem o restabelecimento do habeas corpus não havia condição para o início do diálogo proposto pelo governo. Quatro décadas depois, é possível afirmar que também estava implícita a consciência de Faoro de que tanto o Direito quanto a política têm seus paradoxos. No caso do Direito, ainda que intervenha nas relações sociais mais importantes, seus institutos e procedimentos parecem escapar ao conhecimento da maioria da sociedade. Fala-se muito em Direito, mas não se compreendem bem suas técnicas. No caso da política, enfatiza-se muito a importância de uma cidadania que decide, controla e estabelece metas e rumos, ao mesmo tempo que também se fala muito em democracia. Seu funcionamento eficaz, porém, depende de atores que ela muitas vezes não é capaz de produzir.
Por isso, uma opinião pública que não conheça noções mínimas de Direito e não seja capaz de avaliar os políticos, antes de votar, pode ser instrumentalizada ou convertida em espectadora de uma política midiática, que manipula símbolos e se expressa por encenações, vivendo de evento em evento. A política midiática se deve ao fato de que é mais fácil para os eleitores fazer um juízo sobre pessoas do que sobre assuntos complexos, que pressupõem o conhecimento de regras, condicionantes socioeconômicos, determinantes culturais e fatores históricos. Nos juízos mais simples, comuns à política midiática, prevalecem o populismo e o maniqueísmo, sob a forma da indignação, do discurso moralizador e das narrativas da vitimização. Debates sobre temas como habeas corpus tendem a ser empobrecidos.
+ de José Eduardo Faria: Garantistas vs. consequencialistas – um debate político ou jurídico?
Decorrem daí os efeitos corrosivos das afrontas às instituições jurídicas por lideranças acostumadas não só a desqualificar seus adversários, mas também a reivindicar direitos cuja concessão implica sua negação aos grupos e partidos políticos rivais. Também decorre daí a instrumentalização dos recursos judiciais com o objetivo de travar e deslegitimar o processo político. De certo modo, isso ajuda a entender por que a ordem entre os Poderes da República foi subvertida ao longo dos anos, a ponto de o STF, órgão colegiado por princípio, ficar ao capricho das inclinações ideológicas e predileções políticas individuais dos ministros que a integram. O equilíbrio dos Poderes, sem que um subjugue os outros, cedeu vez a um quadro de Poderes sob suspeição mútua. Aumentou a distância entre o legal e o legítimo na ordem jurídica.
A democracia é o regime no qual a divisão de direitos e deveres libera conflitos de interesse, ao mesmo tempo que propicia mecanismos de entendimento e de negociação que ajustam divergências e ajudam a construir soluções políticas legítimas. Na democracia, em cujo âmbito a política não pode ser entendida fora de um quadro de referências normativas, da hierarquia institucional e da impessoalidade nas relações de dominação, o desafio está na aprendizagem coletiva tanto do reconhecimento recíproco entre os atores políticos quanto do respeito às instituições de direito, uma vez que a instrumentalização político-eleitoral de suas regras dificulta – quando não torna inviáveis – as experiências possíveis de uma vida democrática comum. Não sei qual seria a posição de Faoro sobre a situação jurídica do ex-presidente preso. Creio que, provavelmente, ele criticaria sua condenação. Independentemente disso, é preciso não esquecer que quando recursos judiciais são banalizados, sob qualquer pretexto, perde-se a própria noção de direitos. E era justamente essa noção que Faoro tinha em mente há quatro décadas, quando enfrentou a ditadura para exigir o restabelecimento do habeas corpus.
Fonte: “Estadão”, 12/09/2018