À medida que projeto de pacificação perdeu fôlego, apetite dos clientes foi diminuindo
O cheirinho de frango e de costela no bafo desce a ladeira do Morro dos Prazeres, em Santa Teresa. O caminho até o Bar do Tino, restaurante que fica numa das casas mais altas da favela, é por uma trilha de cerca de dez minutos, no meio da mata. A travessia é feita com água na boca. Até o ano passado, a simpática família do paraibano Severino Alves, que chegou ao morro em 1968, surfava no sucesso da sua gastronomia, que virou assunto de reportagens, foi parar em capa de revista, ganhou prêmio e passou a atrair renomados chefs da cidade. A casa foi aberta antes da instalação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) dos Prazeres, em 2011, apostando no sucesso do projeto — o reconhecimento do asfalto veio a partir de 2013. A paz no morro levou até o ex-secretário de Segurança José Mariano Beltrame a subir a ladeira para degustar as especialidades da casa, servidas numa laje com vista para o Cristo, a Enseada de Botafogo, a Ponte Rio-Niterói e a Zona Portuária.
À medida que o projeto de pacificação foi perdendo fôlego, o apetite dos clientes foi diminuindo. Principalmente em razão de episódios de violência. O Bar do Tino já não era mais tão atrativo. O golpe mais forte foi em dezembro do ano passado, quando um turista italiano morreu baleado ao entrar de motocicleta, por engano, na favela, na volta de uma visita ao Cristo, na companhia de um primo. O restaurante perdeu, de cara, quatro reservas de grupos. E o réveillon na laje, que já estava praticamente fechado, acabou não acontecendo. O movimento no local já caiu mais de 40%, conta Leandro Santana, um dos três filhos de seu Tino e o responsável pelo tempero — cujo segredo ele não revela — que faz do frango do alto dos Prazeres único na cidade. Lá, um serviço farto para quatro pessoas sai por cerca de R$ 60. Ele atribui as perdas ao medo dos fregueses e à crise econômica, ingredientes que têm feito muito empreendedor de favelas do Rio amargar prejuízos.
— Hoje, penso em abrir filiais em outros estados e levar nosso frango para o asfalto, já que muita gente está com medo de vir à comunidade — conta Leandro.
Ele tem o cuidado de só levar a clientela lá em cima — que sobe acompanhada por um guia do restaurante — quando o clima é realmente de tranquilidade. As delícias servidas ali valem o esforço da subidinha, que não passa pela rua principal dos Prazeres. Para garantir a total segurança do público do Bar do Tino, um dos irmãos oferece transporte na ida e na volta para os que querem beber sem se preocupar com direção.
A Casa Mosquito é um hotel boutique aberto pelo casal de franceses Benjamin Cano e Louis Planès na Ladeira Saint Roman logo após as forças de segurança tomarem os morros do Pavão-Pavãozinho e do Cantagalo, em 2009. Decorado com peças de design, o hotel de dez suítes, no acesso ao Cantagalo, sempre teve como um de seus maiores atrativos a paisagem do mar e da favela. No ano passado, o endereço viveu seu auge, embalado pelos Jogos Olímpicos. No entanto, a taxa de ocupação que, em média, ficava entre 80% e 90% em 2016, caiu abruptamente para entre 30% e 40% este ano. Para atrair hóspedes, está sendo oferecido desconto de 40% na diária, que vai de R$ 890 a R$ 1.400.
TAXA DE OCUPAÇÃO CAI EM HOTEL NO CANTAGALO
Há pouco mais de um mês, policiais da UPP do Pavão-Pavãozinho trocaram tiros com traficantes e ficaram encurralados. Homens do Batalhão de Operações Especiais (Bope) foram chamados, e o confronto foi intenso. O pânico na região era relatado nas redes sociais. São episódios como esse, mesmo distantes da Casa Mosquito, que têm afugentado os turistas.
— Outro dia uma menina de Minas queria comemorar o aniversário aqui, com festa para 150 pessoas, mas desistiu porque estava com medo — comenta a diretora do hotel, Aurimar dos Prazeres, em tom de revolta com a atual situação do Rio. — O que salva são os eventos. Em março, tivemos um coquetel da Galeries Lafayette (de Paris), com a Luiza Brunet e socialites.
O Morro do Pinto já foi um recanto pacato perto do burburinho do Centro. Mas, no último ano, chegaram traficantes armados. No alto, está o Bar do Omar, que nasceu como birosca e virou point, com cerveja gelada, petiscos cheios de sabor e laje para a Zona Portuária. Omar Monteiro, o anfitrião, vem intensificando os sambas para compensar a redução da clientela, que caiu mais da metade. Ele também está no concurso Comida di Buteco com seu Brasileirinho, feito de carne de peito assada, batatas-doces coradas, jiló cozido e farofa de linhaça torrada na manteiga. No Morro do Pinto, o que se diz é que os traficantes “não mexem com ninguém”.
Já Omar diz que o lugar ainda é sossegado:
— Todo mês temos dois sambas, um no segundo sábado e um no ultimo domingo. Nunca deu problema.
Quem também tenta chamar freguês é David Bispo, do badalado Bar do David, no Morro Chapéu Mangueira. No ano passado, ele foi vencedor do Comida di Buteco no Rio e na versão nacional do concurso. Este ano, tenta se manter no pódio, mesmo com uma redução de 50% no movimento nas últimas semanas. Divertidíssimo, David mantém o otimismo lá em cima. No almoço da última quarta-feira, atendia com um sorrisão (“nasci para sorrir”) turistas estrangeiros.
— Aquí é peligroso? — perguntava uma colombiana, que chegou por indicação do TripAdvisor.
De dezembro para cá, os tiroteios voltaram. Em abril, um homem foi encontrado ferido de raspão no peito, no Chapéu Mangueira. Como já mostrou O GLOBO, estudo da PM revela que os confrontos em áreas com UPP aumentaram 13.746% em cinco anos. Se em 2011 foram 13, o total em 2016 foi de 1.555. Ontem, houve tiroteio na vizinha Babilônia, e a polícia prendeu o chefe do tráfico do local, Andre Luiz dos Santos, o André GG. No sábado à noite, em outro ponto da cidade, foi morto o 62º policial este ano, o PM Albert Souza Ferreira, atacado a tiros por bandidos em um bar de Irajá.
— Assalto e arrastão não acontecem na favela — defende David, enquanto serve a criação da vez para o Comida di Buteco: um bolinho de massa feito com milho e queijo e recheado com carne-seca. — O público diminuiu, e essa é uma realidade do Rio não só pela crise de segurança, mas também financeira. Não é problema da favela, mas da cidade. Caixas eletrônicos estão sendo estourados em Ipanema. O momento é muito difícil.
Para o comerciante, que abriu o bar em 2010, na esteira da instalação da UPP, a presença policial significava o fim do confronto. Não é mais bem assim. De 2015 para 2016, David investiu R$ 350 mil no negócio, na compra do imóvel e em reformas.
Na vizinha Babilônia, o dono de um hostel de decoração transada e muito procurado por estrangeiros esperava, há um ano, um quadro completamente diferente:
— O turismo caiu depois da Olimpíada. Era para ser o contrário — diz Eduardo Figueiredo, do Babilônia Rio Hostel.
Na favela, até o ano passado, as melhores casas e apartamentos eram disputados. Uma quitinete era alugada, em média, por R$ 1.300 — hoje, por R$ 600, está difícil conseguir interessados.
BISTRÔ DO ALEMÃO SEM CLIMA
Apreciador de uma boa cerveja, Marcelo Ramos Andrade abriu, em 2012, o bistrô Estação R&R na Nova Brasília, a Beverly Hills no Alemão. Era época em que o complexo estava bombando — na TV, a novela “Salve Jorge”, de Glória Perez, levou os becos da comunidade para as casas do Brasil inteiro e, pelo teleférico, que está parado, chegavam turistas curiosos. A realidade hoje é outra. Na noite da última quinta-feira, o bistrô estava vazio: a região tinha virado uma praça de guerra com a morte de um jovem de 16. O happy hour, em que se vende 150 rótulos de cervejas do mundo todo, ficou sem clima. No último mês, a queda no movimento nos fins de semana foi de 60%.
— Temos 30 anos de violência no complexo, mas agora está pior, porque o governo do estado abandonou a segurança. Vivíamos um período ótimo. Há um mês tivemos uma festa linda de Saint Patrick’s Day com a rua inteira lotada. Hoje não daria para fazer — lamenta Marcelo.
Mas o bistrô resiste. O negócio abriu duas filiais — no Bangu Shopping e no Carioca Shopping, na Vila da Penha —e lançou uma cerveja artesanal própria, a Complexo do Alemão, que roda feiras gastronômicas da cidade e é servida no Cadeg.
Fonte: jornal “O Globo”
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