O Brasil está entre os piores nas avaliações internacionais sobre educação, suas universidades vêm perdendo posição nos rankings, temos um Ministério da Educação inchado de programas sem saber se eles justificam seus custos, e ainda sofre da precária má formação de professores. “E se o professor não transmitir valores, não serão o currículo nem os computadores que o farão.”
O cenário e a frase são do cientista político Simon Schwartzman, mineiro de Belo Horizonte que já presidiu o IBGE e que hoje está no Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade no Rio de Janeiro, Iets. Um dos mais respeitáveis pensadores da educação no País há várias décadas, Schwartzman dispensa apresentação.
Nesta entrevista a Gabriel Manzano, ele comenta uma famosa frase de FHC segundo a qual “o Brasil não gasta pouco, ele gasta mal”. E acrescenta: “Isso é hoje mais verdadeiro do que nunca”. O problema principal no País, diz, “não é mais a desigualdade no acesso à educação, mas sim a desigualdade no acesso à educação de qualidade”. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Como avalia hoje, em tempos de governo e ministro interinos, os limites e desafios imediatos da educação brasileira?
O ministro Mendonça Filho é um administrador experiente e formou uma equipe com pessoas altamente competentes, liderada pela secretária executiva Maria Helena Guimarães Castro. O novo grupo de trabalho encontrou um ministério inchado, com orçamento de mais de R$ 40 bilhões de reais – um dos maiores –, e um sem número de programas que vinham crescendo e se expandindo sem se saber se os resultados compensam os custos – como Ciência sem Fronteiras, Pronatec, Fies e as isenções fiscais associadas ao ProUni. Apesar dos cortes recentes, o ministério, aparentemente, não tem problema de dinheiro e poderia fazer muito mais se os recursos fossem bem utilizados.
O que ele pode fazer para melhorar?
Se for possível, nos próximos dois anos, definir com clareza as prioridades de investimento, avançar na reforma e diferenciação do ensino médio, criar um sistema adequado de formação de professores e lidar corretamente com o tema da Base Nacional Curricular. Com isso, terá dado grande contribuição.
A educação brasileira tem tido uma contínua queda nos rankings internacionais. Dá para mudar isso no médio prazo?
De fato, as poucas universidades brasileiras que aparecem nos rankings internacionais – USP, Unicamp, UFRJ, UFMG, UFRGS – vêm perdendo posição, mas o mais significativo é que nenhuma delas está entre as 100 melhores do mundo, e todas as demais estão muito abaixo ou nem aparecem. Mais sério ainda é que o Brasil está entre as piores posições na avaliação do Pisa, da OECD, que mede o desempenho de jovens de 15 anos em linguagem, matemática e ciência – e essa posição quase não tem se alterado ao longo do tempo. Apesar de os gastos públicos por estudante na educação fundamental terem triplicado entre 2004 e 2013, a qualidade da educação medida pelo Saeb, organizado pelo MEC, permanece em níveis muito baixos. Infelizmente, não há uma fórmula ideal, nem bala de prata, para resolver tal situação. Tudo em educação é controverso, mas existe hoje, entre os especialistas, um consenso claro sobre coisas que devem ser feitas nos diversos níveis da educação. Mas elas não são implementadas porque há muita resistência e os governos não querem pagar o custo político de mobilizações contrárias.
O sr. vê caminhos, no médio prazo, para se reduzir a desigualdade no acesso à educação? Vale a antiga afirmação de FHC de que o Estado não gasta pouco, mas gasta mal?
A afirmação de FHC é hoje mais verdadeira do que nunca. Muitos estudos, no Brasil e no mundo, mostram não haver na educação uma relação clara entre o que se gasta e os resultados obtidos. O problema principal da educação brasileira há muito tempo não é mais de desigualdade de acesso, e sim de desigualdade no acesso à educação de qualidade. As famílias mais educadas e com mais recursos põem seus filhos em escolas particulares ou escolas públicas seletivas, e as mais pobres os colocam nas escolas estaduais e municipais mais perto de suas casas, que, com poucas exceções, funcionam mal. Mas há exemplos de que é possível ter boa educação em escolas públicas se elas forem bem organizadas, tiverem uma liderança capaz de tornar os professores comprometidos com a aprendizagem dos alunos, e usarem métodos e materiais pedagógicos de qualidade. Isso requer secretarias de educação competentes e livres de interferência política. Infelizmente, poucas redes escolares no Brasil atendem a estes critérios.
E em relação à qualidade dos professores?
Esse também é um problema central: a má formação dos professores, que não se resolve em cursos de formação continuada, mestrados e doutorados, e muito menos com a oferta de cursos superiores de baixa qualidade e à distância. Os cursos de pedagogia, mesmo nas melhores universidades, não preparam os professores para o dia a dia das salas de aula. Muitas vezes o professor não domina o conteúdo do que deve ensinar. A profissão de magistério no Brasil é pouco atrativa, não só porque os salários são baixos, mas também porque não há como subir na carreira pelo desempenho. Isso afasta as pessoas mais motivadas e talentosas.
Como atenuar essa falha?
Aumentar substancialmente o salário de todos é impossível, por falta de recursos. Mas é possível melhorar os cursos de formação e processos de seleção de professores, e tornar a carreira mais interessante e atrativa, valorizando o mérito. É possível também abrir mais a carreira de professores, permitindo, por exemplo, que jovens engenheiros ou biólogos ensinem em suas áreas de especialidade, com uma preparação pedagógica apropriada, que não precisa ser longa nem complicada.
É incompetência ou “marca cultural” o fato de algumas universidades usarem sua autonomia para aplicar uma soma gigantesca de recursos em pessoal?
Não é um problema cultural, a não ser no sentido de que os governos não têm coragem de associar o dinheiro que as universidades públicas recebem a indicadores de desempenho e eficiência. As universidades devem ser autônomas e livres no seu funcionamento cotidiano, mas precisam ter missões definidas e padrões de qualidade e desempenho, que devem ser estabelecidas em diálogo claro entre as instituições e os governos que as sustentam.
A Base Nacional Curricular Comum teve uma primeira versão muito criticada, que está sendo submetida a novo debate no MEC. O assunto virou uma disputa ideológica. Como vê isso?
Existe de fato essa disputa ideológica, que ganhou destaque sobretudo em relação ao currículo de história, mas isso foi em grande parte sanado na segunda versão. É claro que a escola não deve ser usada para proselitismo político. Mas não se pode, para evitar o proselitismo, submeter as escolas e professores a censura e proselitismo opostos. É importante que os currículos sejam discutidos e os professores estimulados a apresentar pontos de vista de temas controversos, mas preservando sempre sua autonomia e responsabilidade profissional.
No geral, considera bom o conteúdo dessa Base?
A ideia de que deve haver uma definição clara das competências fundamentais que todos os estudantes devem adquirir ao longo da vida escolar me parece importante, mas o que se vê, nas suas mais de 500 páginas, é que há excesso de detalhes e falta de uma visão centrada no aluno. Cada grupo de especialistas colocou no papel tudo o que acha que os estudantes deveriam aprender de sua área, e ninguém pensou como isso seria organizado em um currículo integrado, factível e flexível.
O que há de bom, e de ruim, no fato de poucos e enormes grupos controlarem uma grande quantidade de escolas e alunos no ensino superior?
O setor privado tem desempenhado um papel muito importante ao dar oportunidade de estudo, a um preço módico, a milhões de estudantes que o setor público não tem sido capaz de atender. Existe uma grande variação no setor privado, desde essas grandes empresas que funcionam com padrões mínimos de qualidade e baixo custo por aluno, até instituições de elite como o Insper e a Fundação Getúlio Vargas. Eu não tenho, em princípio, nada contra a existência de universidades com fins lucrativos, desde que ofereçam educação de qualidade – assim como hospitais privados podem oferecer atendimento também de qualidade. Mas quando a lógica empresarial predomina sobre os fins da educação, podem surgir problemas que precisam ser administrados por uma regulação.
O crédito educativo e o ProUni poderiam ajudar mais?
Acho que o problema se agravou pela enorme expansão do crédito educativo e da isenção de impostos através do ProUni. Isso fez com que a educação superior privada se expandisse rapidamente e transformasse em um grande negócio, sem que tenhamos clareza sobre o que, de fato, seus estudantes estão aprendendo e em que medida esses cursos empacotados os qualificam para o trabalho e para a vida. Hoje, cerca de 75% das matrículas do ensino superior no Brasil estão no setor privado, talvez a maior porcentagem em todo o mundo.
O governo fez um grande esforço, em tempos recentes, para expandir as universidades. Foi uma iniciativa correta?
Nos últimos anos, o governo tentou expandir o setor público, colocando mais dinheiro, obrigando as universidades a receber alunos mais pobres e menos qualificados, mas sem tocar no modelo estabelecido 50 anos atrás. Mas o número de formados por essas universidades quase não se alterou, porque o abandono é muito grande. A educação superior pública precisa se expandir, não baixando o nível para incorporar mais estudantes que depois abandonam ou não se qualificam para o mercado de trabalho, mas criando alternativas reais de formação, que sejam mais baratas e mais adequadas aos milhões de jovens que chegam a cada ano ao ensino superior, mas são esmagados pelo Enem que seleciona, entre 6 a 8 milhões de candidatos, os 200 ou 250 mil privilegiados, vindos de famílias mais educadas e de escolas de elite, que conseguem entrar nos cursos gratuitos nas universidades públicas.
O que a educação pode fazer para ajudar o País a superar a atual crise?
Ela pode fazer, fundamentalmente, duas coisas. Primeiro, transmitir, através do professor, valores e modelos de comportamento que inspirem e sirvam de referência para os estudantes. Se o professor não tem esses valores, não será o currículo nem os programas de computador que os ajudarão. E, segundo, equipar os estudantes com os conhecimentos e competências que lhes permitam aprender e formar suas próprias opiniões no mundo de informações e estímulos com que são bombardeados diariamente pela Internet e pelos meios de comunicação. A receita – professores bem formados e comprometidos com os valores da educação, e currículos enxutos e concentrados no que é essencial – parece simples, mas não será fácil chegar até lá.
Fonte: O Estado de S.Paulo, 11/07/2016.
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