“Agora, ele confessa o crime. Me sinto enganado por ele. Admito o erro e peço desculpas por isso.” Pedro Abramovay, secretário nacional de Justiça na gestão Tarso Genro, durante o governo Lula, declarou-se “decepcionado” com a confissão de Cesare Battisti. Suas desculpas devem ser postas em arquivo separado das não desculpas do próprio Genro e do ex-senador Eduardo Suplicy. Mas os três estão errados, antes e agora, num nível mais profundo. Bolsonaro surfa na onda desse erro fundamental, que confere verossimilhança ao discurso dos inimigos dos direitos humanos.
Suplicy acreditava na palavra do Battisti de ontem, mas não acredita na do Battisti de hoje: “Eu ainda quero saber qual foi o tipo de ameaça, de proposição feita a Battisti. Caso ele não fizesse essa confissão, o que aconteceria?”. Fantástico: o homem falava a verdade quando se declarava inocente, mas mente ao confessar a culpa. A “verdade” de Battisti era que o Estado italiano forjara provas contra ele. Já a “mentira” de Battisti deriva de ameaças do Estado italiano a um preso que cumpre pena perpétua.
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Genro não se baseava na palavra do militante, mas no seu próprio parecer sobre o processo judicial italiano: “Não havia prova no processo, que li inteiro”. Contudo, como Suplicy, aponta um dedo acusador na direção do Estado italiano: “A Procuradoria precisou da confissão dele para confirmar as acusações. Battisti pode estar fazendo uma confissão combinada com uma transação com o promotor.”
De fato, ambos estão dizendo que a Itália era —e ainda é— uma falsa democracia. A acusação implícita reproduz a ideologia do “grupúsculo” extremista de Battisti. Nos textos destinados a justificar sua estratégia terrorista, o Proletários Armados pelo Comunismo —assim como as Brigadas Vermelhas italianas e o Baader-Meinhof alemão— invocava a necessidade de desmascarar as democracias ocidentais, expondo suas almas de Estados policiais. A esquerda brasileira jamais conseguiu se desvencilhar dessa desconfiança essencial na democracia —que, aliás, explica as resistências a condenar nitidamente as ditaduras em Cuba e na Venezuela.
Abramovay segue outro rumo, mas seu erro tem a mesma raiz. Enquanto Genro sugere que a confissão é prova espúria dos crimes de Battisti, Abramovay imagina que ela constitui sua prova legítima. No Estado democrático de Direito, porém, não se admitem confissões como provas conclusivas. A comprovação legal aceitável deve estar nas evidências reunidas pelo processo judicial. Essa regra de ouro, porém, é ignorada tanto pelo que dá crédito à confissão de Battisti (Abramovay) quanto pelos que não dão (Genro e Suplicy). No fundo, os três continuam a desprezar os quatro tribunais que analisaram o caso Battisti.
Aí está o núcleo do problema. Dois tribunais italianos sentenciaram Battisti. Depois, um tribunal francês de apelação autorizou sua extradição e a Corte Europeia de Direitos Humanos confirmou a sentença. O Brasil do PT comportou-se como instância revisora de todos eles. Suplicy, defensor parlamentar do italiano, Genro e Abramovay, autoridades responsáveis pela concessão de asilo, e Lula, chefe de Estado que confirmou o asilo, colocaram as suas convicções políticas acima das decisões dos sistemas judiciais da Itália, da França e da União Europeia.
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Atos e palavras têm consequências. A confissão oferece a Bolsonaro e seu cortejo de brucutus uma oportunidade inigualável para identificar a proteção dos direitos humanos à defesa de terroristas e homicidas. Depois da desmoralização do asilo concedido a Battisti, torna-se mais difícil argumentar pela concessão de asilo a dissidentes pacíficos perseguidos por ditaduras de direita ou de esquerda.
Genro, ao menos, não liga para isso: por um ato dele, em 2007, o Brasil deportou a Cuba os dois boxeadores que buscavam asilo no Brasil.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 30/03/2019