Não tenho a menor capacidade de avaliar tecnicamente o desempenho das escolas de samba na avenida. No plano simbólico, contudo, a vitória da Beija-Flor no Rio faz todo o sentido. O desfile dela conseguiu captar o momento que o Brasil vive com uma força verdadeiramente catártica.
Ao invés do gigante que “acordou” em 2013 – tempo de otimismo com a mudança que viria veloz, impulsionada pelas ruas – temos agora o monstro de Frankenstein, que é também um gigante mas vem com partes disformes e mal-encaixadas.
Por que não damos o salto que estamos predestinados a dar? Por que o Brasil continua emperrado, atolando no lamaçal depois de mais um voo de galinha? A crise iniciada em 2014 é muito severa. Mexe não só com o bolso mas com a própria esperança da população, que acreditava na melhora de vida que experimentava há décadas. Era tudo construído sobre nuvens. “Oh pátria amada, por onde andarás? Seus filhos já não aguentam mais!”.
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Em meio ao sofrimento e abandono geral, vemos que em Brasília todos vivem bem. O cidadão comum aperta os cintos, o funcionalismo não admite ficar sem reajuste. Os impostos são cruéis. Rouba-se bem também. E mesmo quem é pego tem passado impune. A Petrobrás é entregue aos ratos. Mais do que tudo, a corrupção paira como a grande chaga oriunda da ganância desenfreada na qual o Brasil foi gestado.
Eu não acho que a corrupção seja o grande problema do Brasil. Penso, inclusive, que a obsessão pelo tema traz consigo seus problemas: punitivismo exacerbado, poderes ilimitados a Judiciários e Ministério Público, clima de indignação denuncista constante, e nos volta para a falsa imagem do paladino da moral como redentor da política. Contudo, reconheço que essa revolta hoje em dia é o que capitaliza grande parte da opinião pública, concentrando um sentimento que é sim verdadeiro: a classe política (ou melhor, todo o estamento estatal) vive num mundo de privilégios e tem se mostrado incapaz de trazer as mudanças que a sociedade brasileira precisa. E essa revolta não tem alinhamento partidário.
Nesse sentido, a escolha da Beija-Flor foi muito superior ao desfile da vice Paraíso do Tuiuti, que partidarizou a crítica (ao invés do rato como vilão, o tucano). Está certo que o foco era outro: não a corrupção e as mazelas do Brasil em geral, mas a escravidão e suas (supostas) versões modernas, como o emprego precarizado pela reforma trabalhista e pela agenda “neoliberalista”. Ao focar um trecho de seu desfile em Temer e nas manifestações “coxinhas”, dá a entender que os problemas profundos do Brasil são de agora e restritos a um dos lados do jogo político, quando todos sabemos e sentimos que o buraco é muito mais fundo e passa por todos os lados.
Ao mesmo tempo em que a corrupção corrói e concentra nossa riqueza, a intolerância volta com força redobrada para cindir a sociedade. O crescimento do fundamentalismo religioso contra minorias sexuais e religiosas, assim como a guerra política – que nega um dos nossos maiores valores: a paz.
Felizmente, a Beija-Flor soube mostrar também o outro lado. O Brasil, mesmo na crise e no desespero (e se o país todo vive essa situação, o Rio a vive dez vezes mais), tem uma lição a dar. Uma carta na manga nos salva mesmo nos piores momentos. É uma lição que tem tudo a ver com o carnaval.
“Mas o samba faz essa dor dentro do peito ir embora / Feito um arrastão de alegria e emoção o pranto rola / Meu canto é resistência / No ecoar de um tambor / Vem ver brilhar / Mais um menino que você abandonou” .
Na adversidade, fazer arte celebratória. A resistência de que a música fala não é a resistência imaginária de pseudo-revolucionários e militantes, mas a resistência interior de quem não deixa que as circunstâncias negativas matem a alegria de viver. Mais do que o gigante ou o Frankenstein, o Brasil é o menino que brilha no ecoar de um tambor.
O escancaramento da revolta e desilusão nacionais, junto do espírito de celebração que faz o Brasil valer a pena. Não é à toa que o público tenha invadido a avenida e continuado a cantar o samba-enredo da campeã mesmo depois de a bateria parar de tocar.
Fonte: “Exame”, 15/02/2018