A intuição era o único – e precário – recurso que os responsáveis por políticas públicas do estado do Rio Grande do Norte contavam para avaliar o Leite Potiguar, criado em 1987. Primeiro programa de distribuição de leite custeado por um governo no país, ele atendia 700 pessoas, em 40 municípios. Ainda que falassem com alguns fornecedores e beneficiários, era impossível para os quase 20 funcionários responsáveis pelo projeto manter contato com toda a cadeia envolvida na iniciativa. Pequeno quando comparado a outros estados, o Rio Grande do Norte, nessas circunstâncias, transformava-se em uma imensidão.
Esse problema, contudo, era a oportunidade que Guilherme Lichand esperava. Doutorando por Harvard, ele fazia um estágio na Secretaria do Planejamento e das Finanças do estado. Os dilemas do Leite Potiguar eram perfeitos para submeter a teste uma ideia que ele acalentava havia meses: usar o celular para levantar dados sobre o impacto de ações do governo na vida da população.
Em 2011, quando trabalhava no Banco Mundial (Bird), antes de ir para Harvard, Lichand acompanhou o surgimento de iniciativas que usavam a popularidade do telefone móvel para reunir informações sobre fatos diversos. Elas incluíam desde dados sobre epidemias no Sudão até o preço de commodities na América Central. Paulistano de 29 anos, Lichand achava que poderia aprimorar o sistema. No Bird, os celulares serviam de ferramentas para pesquisas junto à população. A entidade enviava um SMS com a questão para determinado grupo. Depois, aguardava pela resposta, mas exigia que as pessoas consultadas, gente pobre em sua maioria esmagadora, pagassem pela mensagem. “A ideia era boa”, diz Lichand. “Mas mal executada.”
Uma vez no Brasil, Lichand queria incutir eficácia nesse sistema. Tinha, contudo, de enfrentar as limitações da telefonia móvel brasileira. Outras startups nacionais, como a Pinion, haviam tentado aproveitar a alta penetração de celulares no país para fazer pesquisas, mas, em todas elas, a população de baixa renda era excluída. Mesmo porque 75% dos telefones móveis no país são pré-pagos e somente três em cada dez, smartphones. O restante é composto por celulares muito simples, às vezes, sem tela colorida. Some-se a isso a instabilidade do sinal fora dos grandes centros urbanos e o desafio se tornava maior.
Questionários narrados
Para vencer essas barreiras, Lichand tinha um plano – ou quase isso, feito em PowerPoint. A estratégia havia sido esboçada quando ele fundou com dois amigos, o publicitário Rafael Vivolo e o consultor em políticas públicas Marcos Lopes, a startup MGov. Em vez de conexões do tipo 3G e de aplicativos modernos, a ideia era fazer com que as pesquisas da startup usassem a função mais elementar do telefone: a voz.
Durante três semanas, os 700 beneficiários do Leite Potiguar receberam três ligações de cinco minutos cada. As chamadas repetiam perguntas pré-gravadas. Elas tinham como objetivo entender como o programa poderia ser melhorado. Para responder, o usuário ouvia a questão e apertava o número do teclado correspondente à sua resposta. Quem concluísse o questionário ganhava até R$ 6 em crédito pré-pago para o celular.
Após a pesquisa, a MGov entregou ao governo potiguar um relatório com as principais descobertas. “O leite não chegava com qualidade adequada à maioria dos municípios”, diz Lichand. Havia, em contrapartida, um grupo de cidades em que o programa funcionava muito melhor. Nesses locais, verificou-se que a responsabilidade pela execução do projeto era municipal. Tal constatação levou à municipalização da distribuição do leite.
Preço atraente
O sistema desenvolvido por Lichand e seus sócios tinha um atrativo adicional. Ele funcionava a uma fração do custo de um levantamento feito in loco por levas de pesquisadores. Institutos tradicionais cobram até R$ 30 por entrevista presencial, em cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro. No sertão do Rio Grande do Norte, esse preço salta para R$ 90. A MGov entregou o projeto cobrando R$ 20 por entrevista.
A diferença radical de preço e a falta de dados confiáveis para avaliar políticas sociais indicavam um futuro brilhante para a MGov. Parecia que o trio de amigos faturaria milhões em curto espaço de tempo. A história, porém, foi diferente: o telefone da startup não tocou. Depois do Rio Grande do Norte, a MGov ficou um ano sem trabalho. Isso ocorre porque o fluxo de contratação nos governos em geral é muito mais lento do que na iniciativa privada. Hoje, a empresa lida com uma janela de três anos – é o tempo estimado entre o primeiro contato e a assinatura do contrato final. A empresa também não tem concorrentes, o que dificulta a participação em processos de contratação pública. O trabalho no Rio Grande do Norte, por exemplo, teve de ser feito sem licitação.
No ano sem trabalho, Lichand, Vivolo e Lopes não ficaram parados. Eles mudaram a maneira como os serviços da startup poderiam ser contratados. Criaram um novo sistema telefônico que permite respostas abertas (o respondente pode falar o que o incomoda, em vez de só apertar botões) e miraram em instituições e empresas que estariam interessadas em levantar dados sobre o impacto social de qualquer tipo de iniciativa.
Essa mudança de estratégia levou a MGov a ser contratada por duas universidades, a americana Harvard e a britânica Warwick, para avaliar o impacto da seca no sertão do Ceará. Criado em 2014, o projeto Painel das Secas envia a previsão oficial de chuva por SMS aos moradores da região e documenta o impacto da informação na decisão de compra de fertilizantes, por exemplo.
Os dados levantados, segundo Lichand, ajudarão o governo do Ceará a criar políticas públicas para proteger os agricultores na pior seca registrada no estado nos últimos 60 anos. O projeto atraiu a atenção de gente graúda: no ano passado, a startup recebeu uma doação de US$ 150 mil da Fundação Bill & Melinda Gates, a primeira feita pelo fundador da Microsoft em projetos de agricultura no Brasil.
O desafio é alcançar todos
Com nove clientes, entre fundações, empresas e governos, a operação da startup é lucrativa. Mesmo porque é enxutíssima. Além dos fundadores, a MGov tem apenas três funcionários. Interessados apenas em avaliar o impacto de políticas sociais, os sócios descartam usar a tecnologia para pesquisas de mercado de consumo e publicitário, área com grande potencial econômico. Há, porém, outro setor tão pujante quanto esse, no qual a MGov já se movimenta: o das pesquisas eleitorais. Como as equipes dos candidatos usam muitos dados para tomar decisões nas campanhas, quanto mais precisa a informação, melhor o resultado.
A MGov tem, porém, grandes desafios pela frente. Para que as suas pesquisas reflitam tendências de toda a sociedade, ela terá de vencer a resistência das classes mais altas em responder questionários por meio de celulares. Entre as camadas mais pobres, essa barreira foi quebrada com a oferta de crédito no celular. Algo que não faz o menor sentido entre as pessoas que usam serviços pós-pagos. Outro passo que precisa ser dado: provar que a metodologia criada do zero pela startup é confiável. Assim, a MGov vai poder sonhar com o dinheiro tanto das empresas como dos políticos.
Fonte: Época.
No Comment! Be the first one.