*Por Julia Franco e Victor Vieira
De forma geral, o Bitcoin e os criptoativos possivelmente ainda são mais populares do que o “Blockchain” – tecnologia que viabilizou a criação da moeda digital e que possui aplicações que extrapolam, significativamente, essa finalidade específica.
Passada a fase inicial de euforia mais acentuada com relação a esta nova classe de ativos, impulsionada pela expectativa de lucro fácil e rápido, é possível notar um amadurecimento do setor com o surgimento de alguns gestores altamente especializados no exterior e no País, além de discussões cada vez mais ricas em torno de aplicações mais variadas da tecnologia que possibilitou o seu surgimento.
O Blockchain é, em linhas gerais, um sistema de registro “distribuído” de informações, cujos principais atributos permitem que os dados nele armazenados sejam diretamente acessíveis por seus participantes, registrados de forma cronológica e protegidos por criptografia (portanto, invioláveis). Trata-se de um tipo de tecnologia que oferece um elevado grau de transparência e segurança às informações.
Por mais que ainda existam certos desafios para tornar essa tecnologia escalável, o Blockchain tem o potencial de agregar segurança (e reduzir custos) em diversas atividades no mercado, sendo a securitização certamente uma delas.
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A despeito da importância das operações de securitização para o mercado de capitais e a economia como um todo, o setor sofreu bastante, em termos globais, após a crise do subprime e, no Brasil, após alguns escândalos envolvendo fundos de investimento em direitos creditórios – FIDCs. Em ambos os casos, notou-se, de forma geral, falhas nos mecanismos de verificação e monitoramento dos créditos que lastreavam os respectivos produtos.
Como consequência, tanto a SEC quanto a CVM tornaram suas regras mais restritivas, o que, evidentemente, elevou o custo geral das operações. No Brasil, foi notada significativa redução de players dispostos a prestar serviços de administração fiduciária e custódia. Não à toa, a CVM em breve colocará em audiência pública nova regra que possivelmente buscará distribuir a responsabilidade entre os prestadores de serviços de FIDCs de forma mais equilibrada.
Neste contexto, parece-nos que o Blockchain poderia auxiliar esses participantes no cumprimento de sua regulamentação aplicável. Caso recebíveis fossem registrados em plataformas que se utilizassem de referida tecnologia, por exemplo, seus documentos representativos seriam integralmente digitalizados e seus termos protegidos por criptografia.
Nesse cenário, custodiantes de FIDCs poderiam ter acesso a informações mais confiáveis com relação a esses créditos, mitigando eventual aquisição de direitos creditórios fraudulentos, além de simplificar a guarda de seus instrumentos constitutivos.
Outra funcionalidade de plataformas Blockchain envolve o uso de contratos inteligentes e auto executáveis, os smart contracts. Uma vez registrados por meio de smart contracts, os termos dos contratos dos recebíveis poderão ser automatizados e acompanhados em tempo real, o que proporcionaria um controle mais apurado da performance dos créditos lastro de uma securitização.
Importa destacar que o uso do Blockchain em operações do mercado não parece ser uma realidade tão distante, principalmente se observarmos algumas experiências trazidas por outras jurisdições.
Bons exemplos desses casos podem ser vistos nos testes realizados no Sandbox do Financial Conduct Authority, regulador britânico.
O chamado sandbox regulatório é iniciativa promovida por vários reguladores ao redor do mundo que visa oferecer um ambiente de experimentação de produtos inovadores aos agentes do mercado, sobretudo baseado em um regime de concessão de dispensas regulatórias.
No mencionado Sandbox do Reino Unido, a startup Nivaura, por exemplo, foi pioneira em teste que concluiu a emissão de valor mobiliário integralmente emitido, registrado e liquidado em plataforma Blockchain. Já a Fractal teve seu projeto aprovado para a atual rodada de testes do regulador, cujo objetivo é desenvolver uma plataforma se utilizando de referida tecnologia para registro de créditos de pequenas e médias empresas para facilitar operações de securitização. Em estágio mais avançado, a China já registra algumas emissões de securitização através do Blockchain, visando justamente proporcionar uma maior transparência aos créditos dessas operações.
Considerando os testes a serem realizados no Sandbox da CVM no próximo ano, o momento é bastante oportuno para discutir inovações do tipo – em especial quando se trata de soluções que visam aumentar a confiança quanto ao conteúdo das informações dos créditos e diminuir custos de observância que possam contribuir no movimento de recuperação da credibilidade dessa importante indústria.
*Julia Franco é advogada do Stocche Forbes Advogados atuando em assuntos de direito societário e mercado de capitais, notadamente na estruturação de fundos e operações inovadoras e no atendimento e representação de participantes do mercado envolvendo questões regulatórias junto à CVM, ANBIMA e B3. Foi Assessora e Chefe de Gabinete do Presidente da CVM (2013-2015). Julia é Bacharel em Direito pela PUC-Rio e possui MBA Executivo em Finanças pelo IBMEC-RJ.
*Victor Vieira é advogado do Stocche Forbes Advogados atuando em assuntos de direito societário, mercado de capitais e finanças estruturadas, notadamente na estruturação de fundos de investimento e operações inovadoras. Victor é Bacharel em Direito pela PUC-Rio, possui Pós-graduação em Direito Societário e Mercado de Capitais pelo IBMEC-RJ, especialização em Finanças pelo COPPEAD/UFRJ e Mestrado em Direito (LL.M.) pela Queen Mary University of London, com especialização em Blockchain e Fintechs.
Fonte: “JOTA”, 30/12/19