As desigualdades são históricas e extremas no Brasil. Essa condição vem se perpetuando através do tempo. O entendimento de alguns fatos econômicos e sociais aumentaria a chance de viabilizar uma agenda mais eficaz de desenvolvimento e combate às desigualdades. No final do arco-íris há um pote de ouro. Mas vai dar trabalho chegar lá.
A partir da década de 1990, a distribuição de renda começou a melhorar, especialmente a partir de 2001. Os mais pobres se beneficiaram da queda na inflação e das políticas sociais de FHC, turbinadas por Lula. No entanto, o crescimento foi modesto e, recentemente, a economia colapsou. Estaremos diante de uma
contradição fatal? Não creio.
Comparando-se o Brasil com os países da OCDE (que inclui Chile, México, Turquia e os principais avançados), nota-se que somos o mais desigual.
Quando se atenta para programas sociais de transferência de renda, conclui-se que: (1) como proporção da renda, o Brasil é o país que menos transfere para quem ganha menos e dos que mais transferem para quem ganha mais (isso mesmo, menos-menos, mais-mais); (2) em termos absolutos, as transferências para os 20% mais ricos representam quase a metade do total, com destaque para aposentadorias e pensões. No Brasil, o Estado age como um Robin Hood às avessas.
A partir de 2006, a distribuição de renda parou de melhorar e há quatro anos passou a piorar, uma tragédia. Há que se ter em mente também a relevante e persistente falta de mobilidade social, ou seja, é baixa a chance de uma pessoa criada em família pobre sair da pobreza. Há, portanto, muito espaço para melhorar, tanto aperfeiçoando os mecanismos de proteção social quanto por meio de investimentos sociais, que nos aproximariam do ideal da igualdade de oportunidades.
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O quadro se agrava quando muitos enriquecem se aproveitando de seu poder político e econômico para obter benesses do Estado. Nesse ambiente, predominam a frustração, o desalento e a descrença geral no sistema político. Florescem também populismos e demagogias de todos os matizes que, com suas propostas simplistas e enganosas de que tudo é possível sem custos, impedem uma discussão desapaixonada sobre as grandes questões que importam para o bom futuro do país.
Posto de outra forma, a desigualdade é um veneno que dificulta a construção de uma agenda de reformas necessária para o crescimento. Sem as reformas, não há crescimento, e as oportunidades de melhoria do padrão de vida das pessoas são muito escassas. Ou seja, o combate à desigualdade é mais do que um imperativo moral —é condição necessária para crescermos, de forma sustentável e inclusiva. Esse é meu ponto principal.
Vejamos agora como.
Uma resposta eficaz ao quadro de estagnação e desigualdade passa obrigatoriamente por aumento dos investimentos nas grandes áreas sociais: educação, saúde, infraestrutura, saneamento, transportes, segurança, meio ambiente. Uso aqui o termo investimento, e não gasto, pois são de fato desembolsos geradores de crescimento, oportunidades e qualidade de vida.
Cabe então a pergunta: com o Estado quebrado, de onde viriam os recursos para financiar os investimentos? Defendo que teriam que vir da redução dos gastos com Previdência, funcionalismo e
subsídios. Vejamos por quê.
O funcionalismo e a Previdência no Brasil consomem 80% dos gastos públicos. Na maioria dos países de renda média essa proporção gira em torno de 60% ou menos. Temos que dar um jeito de reduzir e redirecionar esses gastos. Se formos para 60%, ainda relativamente alto, se economizaria cerca de 7 pontos do PIB (20% dos gastos, que equivalem a 35% do PIB).
Os gastos com Previdência e seguridade social no Brasil são muito altos para um país jovem. E o pior é que estamos envelhecendo rapidamente. O sistema atual é extravagante e injusto, há espaço para um ajuste de pelo menos 3 pontos do PIB por ano, obtidos gradualmente ao longo de 10 anos. Tudo indica que a reforma que tramita no Congresso trará um ganho de cerca de 1,5 ponto do PIB ao ano,
um primeiro passo relevante.
Os gastos com o funcionalismo também representam um ponto fora da curva, tanto no que diz respeito ao número de funcionários quanto à sua remuneração. Aqui também vislumbro espaço para uma economia de cerca de 3 pontos do PIB. Trata-se de meta ambiciosa, mas factível, a ser perseguida através de uma reforma do Estado, implantada, digamos, ao longo de 10 anos. Esta reforma contribuiria também para um aumento da produtividade do próprio Estado, uma clara e razoável demanda da sociedade.
Vale registrar que, além de liberar recursos para gastos que reduziriam as desigualdades e criariam oportunidades, em ambas as reformas o ajuste deveria recair sobre os que ganham mais.
A terceira grande fonte de recursos para o combate à desigualdade seria a eliminação de subsídios (por exemplo, vantagens no pagamento de impostos e juros) cuja marca principal é beneficiar os que menos precisam. Essas medidas deveriam ser postas em prática o quanto antes, para dar autoridade moral ao projeto como um todo. Listo aqui apenas as mais relevantes, algumas já tomadas.
Um ponto é eliminar os subsídios implícitos nos regimes especiais de tributação, como o Simples e a opção pelo lucro presumido para o Imposto de Renda das empresas. O Simples está por trás da chamada “pejotização”, situação em que indivíduos de alta renda adotam formato de pessoa jurídica e assim reduzem a alíquota do IR efetivamente pago a níveis muito baixos, chegando a um dígito. Pessoas que ganham até R$ 4,8 milhões por ano podem se aproveitar dessa vantagem, não faz sentido. Segundo o Orçamento de Subsídios da União, a conta total dos benefícios tributários atingiu 4,3% do PIB em 2018. Seria razoável imaginar uma economia de até 2 pontos do PIB em alguns anos, voltando a níveis de subsídio de 15 anos atrás. Há espaço para aumentar a tributação do capital também.
Já em andamento temos uma redução de cerca de 1,8% do PIB por conta da eliminação dos subsídios ligados à atuação do BNDES, um resultado altamente desejável, pois se tratava de uma máquina de concentração de renda. Isso porque os depósitos dos trabalhadores eram remunerados a taxas muito baixas (uma perda) e emprestados a empresas a taxas também abaixo das de mercado (um ganho).
+ Gustavo Franco: A mágica da confiança
Resumindo: entre os ajustes já feitos ou a caminho (subsídios de crédito e Previdência) e reformas nas demais áreas, vislumbra-se uma economia de cerca de 10 pontos do PIB. Parece um número enorme, mas é proporcional às distorções a corrigir. Com esses recursos seria possível: (1) equilibrar as contas públicas, para deixar para trás nosso passado de crises e incerteza, e (2) aumentar investimentos sociais, para reduzir a desigualdade e aumentar o crescimento. Favor reler esta última frase.
É fundamental o entendimento de que não estamos diante de um jogo onde o ganho de um é a perda de outro. Com mais crescimento, os perdedores em termos absolutos seriam apenas aqueles a quem se subtrairiam privilégios, por definição descabidos. E quem deve definir o que é descabido é a sociedade, por meio de seus representantes eleitos, a partir de um debate público, organizado em cima de dados e fatos apresentados de forma clara.
Estamos diante de opções políticas que, se encaradas, transformariam o Brasil em um país mais próspero e mais justo. Não há tempo a perder.
Fonte: “Folha de S. Paulo”