Ao adotar uma estratégia de “confronto” com menos de seis meses de mandato, o presidente Jair Bolsonaro está se “arriscando demais e muito cedo”. A análise é do cientista político e professor da FGV-Ebape Carlos Pereira. Segundo ele, o governo não tem outra saída porque prefere manter uma coalizão minoritária no Congresso em vez de negociar com os partidos.
Ao Estado, Pereira afirmou que os atos marcados para este domingo, 26, a favor do governo têm duas faces: se forem bem-sucedidos, Bolsonaro acumula capital político. Por outro lado, se as manifestações se voltarem contra instituições democráticas, como o Congresso ou o Supremo Tribunal Federal, “o tiro vai sair pela culatra”.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Na semana passada, Jair Bolsonaro endossou um texto que afirma que “o Brasil, fora desses conchavos, é ingovernável”. Há quem veja que o presidente, ao publicar esta mensagem, consideraria a possibilidade de uma “ruptura” democrática ou estaria inclinado a soluções autoritárias. O sr. vê dessa forma?
Não interpreto (o texto compartilhado) como se o presidente Bolsonaro estivesse namorando com saídas não democráticas ou iliberais. Vejo como parte de uma estratégia comum em presidencialismos plebiscitários – a literatura americana chama de estratégias de going public. Como ele preferiu construir um governo minoritário e uma coalizão desproporcional, ele não tem outra saída a não ser dar continuidade a essa estratégia de campanha perpétua, de estabelecer mecanismos de contato direto com a sociedade para pressionar o Legislativo e o próprio Judiciário. Vejo essa manifestação muito mais como um desdobramento dessa estratégia plebiscitária.
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O que caracteriza o que sr. chama de presidencialismo plebiscitário e quais os riscos que essa estratégia traz?
O presidencialismo plebiscitário se caracteriza por mecanismos diretos de conexão entre eleitor e presidente na tentativa de não levar em consideração as instituições partidárias, com o objetivo de pressionar os partidos e os líderes partidários a votar de acordo com o presidente. O grande problema dessa estratégia é que normalmente só dá resultado para o presidente no curto prazo. Ao longo do tempo, quando o presidente estressa demais essa relação com o Legislativo, que se sente ignorado e pressionado, e no momento em que o presidente mostra alguma vulnerabilidade política, na economia ou caso de corrupção, o presidente corre sério risco de perder a capacidade de estabelecer os termos de negociação. O Legislativo passa a ter o poder de barganha e os custos de governabilidade se tornam muito altos. O presidente está arriscando demais e muito cedo em uma estratégia de confronto e isso tende a criar animosidade, problemas e uma relação truncada com o Legislativo.
Os atos vão testar a força do governo Bolsonaro?
Se for uma manifestação legítima, democrática, apenas de apoio ao governo ou a uma agenda do governo, isso faz parte do jogo democrático. Se for bem-sucedida, o governo vai acumular capital político. Agora, se essas manifestações tiverem como princípio a fragilização de instituições democráticas, o tiro vai sair pela culatra. Mesmo se for um fracasso. O governo corre o risco de sinalizar muito cedo para a sociedade que o apoio de que dispõe é restrito a um grupo específico da sociedade muito truculento, muito conservador e muito retrógrado. Se for um fracasso, vai ficar a imagem de um governo isolado, com um grupo específico da sociedade. É um jogo de muito risco que o governo está tendo logo no início, com menos de seis meses, chamar um ato em defesa do governo e tentando vulnerabilizar o Legislativo e as estruturas judiciárias para constrangê-los a não se comportar contrariamente aos interesses do governo.
O Centrão abriu mão de novos ministérios. Essa decisão foi tomada às vésperas das manifestações marcadas para este domingo. O senhor acredita que esse grupo de partidos, atacado por apoiadores do presidente, tomou essa decisão com receio de parte da opinião pública?
Gostaria de fazer uma observação. Primeiro existe uma completa deturpação do significado dos ganhos de troca em regimes democráticos. O governo faz uma interpretação equivocada ao demonizar e interpretar como sujas trocas legítimas que existem em qualquer democracia quando o presidente ou o primeiro-ministro não desfruta de maioria pós-eleitoral. Trocas legítimas não são sinônimo de corrupção. O Centrão abriu mão da demanda de um novo ministério em função de uma potencial repercussão negativa com essa parcela que apoia o governo porque o Centrão tem o receio de ficar com a pecha negativa ao exigir espaço legítimo no governo. Tanto o governo errou ao demonizar essas trocas como o Centrão errou ao não ter capacidade de encarar esse debate com a sociedade e demonstrar que essas trocas e espaços no governo são legítimos.
O combate à corrupção foi uma das bandeiras de campanha de Bolsonaro, mas o presidente se comportou como um político tradicional ao desconfiar e atacar as investigações a respeito de seu filho Flávio Bolsonaro. O governo tem cumprido a expectativa no combate à corrupção?
O governo tem atendido parcialmente e, em última instância, tem frustrado essa expectativa. Não só a expectativa de combate à corrupção, mas a expectativa de ordem, porque Bolsonaro também foi eleito em cima de uma demanda de ordem e do combate à corrupção. O que a gente está observando neste governo é tudo menos ordem. Quando instituições de controle identificam potenciais malfeitos em opositores meus, eu sou a favor do combate à corrupção, mas quando as instituições de controle identificam potenciais malfeitos nos meus, nos próximos a mim, meus parentes ou do meu filho, eu sou contra e acho que é perseguição. A reação do presidente e do governo até o momento sobre investigações iniciais do Ministério Público do Rio em relação aos potenciais malfeitos do senador Flávio Bolsonaro lança dúvida sobre o compromisso real do governo quanto ao combate à corrupção.
As investigações no caso que envolve Flávio Bolsonaro e o ex-assessor Fabrício Queiroz podem desgastar o governo?
Dependendo da investigação, pode respingar diretamente no presidente. Existem suspeitas muito fortes de peculato, de enriquecimento ilícito e de ocultação de patrimônio. O Ministério Público terá de investigar e, dependendo do que seja demonstrado, isso com certeza trará consequências diretas para o governo, especialmente se o governo assumir uma postura de vitimização. Para ser consistente com a campanha, o presidente, se forem encontradas evidências robustas, terá de defender punição e não usar essa argumentação de que está sendo perseguido ou coisa que o valha.
Como o senhor enxerga o papel do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em um contexto de confronto entre e Executivo e Legislativo?
O Rodrigo Maia está exercendo uma postura muito similar ao que o PMDB (atual MDB) exerceu nos governos Fernando Henrique Cardoso e nos governos Lula e Dilma, ou seja, a postura do legislador mediano. Os partidos normalmente de centro, como Democratas, PSDB, PSB, são partidos mais maleáveis ideologicamente porque não estão nos extremos, nem na direita, nem na esquerda. Esses partidos e essas lideranças são fundamentais no espaço multipartidário porque elas evitam saídas extremas.
Pesquisas recentes, como a do Instituto Ipsos, apontam que a sociedade brasileira está polarizada e com grau de intolerância alto. O senhor concorda com essa tese e até que ponto isso se torna um problema?
De fato a sociedade está muito polarizada e a polarização se expressa justamente com essas características de tentar diminuir os malfeitos dos que pertencem ao seu grupo e maximizar os malfeitos dos que são distantes de mim, opositores a mim, ou quando as pessoas só escutam ou valorizam informações consistentes com o que elas já acreditam e desvalorizam informações que são inconsistentes com o que elas acreditam. O Brasil vem construindo um espaço para polarização desde o impeachment da presidente Dilma. Entretanto, essa polarização tem alguns aspectos positivos, não só negativos, que é o aspecto que você cria janelas de oportunidades a mudanças. Foi a partir dessa polarização entre políticos que estavam envolvidos em escândalos de corrupção e instituições de controle que queriam diminuir a corrupção no Brasil que nós vimos o fortalecimento das instituições de controle, em especial da Operação Lava Jato, Judiciário e Ministério Público. É muito importante entender que, em momento de mudanças, quando você polariza, você cria condições para novos arranjos. Naturalmente, se você tem uma polarização consistente durante vários períodos da história e ela se perpetua, isso é disfuncional para o sistema.
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No livro ‘Brazil in Transition’, o senhor e os outros autores analisam os últimos governos do Brasil e abordam as ‘janelas de oportunidades’. O governo Bolsonaro é uma mudança de rumo?
De fato é, porque o pilar de inclusão social responsável como crença dominante tem existido desde o Plano Real, em 1994. Tanto o governo Fernando Henrique Cardoso quanto o governo Lula foram consistentes com esses dois pilares. O governo Dilma negligenciou um deles, do equilíbrio macroeconômico, quando ela se comportou de forma indisciplinada do ponto de vista fiscal e o governo gastou mais do que podia. Houve uma negligência dos princípios de equilíbrio macroeconômico e o sistema político brasileiro foi eficiente o suficiente para punir com um impeachment o governo que, de certa forma, negligenciou um dos pilares fundamentais como as responsabilidade fiscal. Entretanto, governo Bolsonaro, quando chega, assume compromissos críveis muito fortes com o equilíbrio fiscal na figura do ministro da Economia com a defesa clara da reforma da Previdência, mas ao mesmo tempo os primeiros passos sinalizam uma negligência do outro pilar (inclusão social), no sentido mais amplo do termo, bem como a decisão do governo de contingenciar recursos a áreas tão fundamentais para inclusão social no Brasil como a Educação. Se o governo enveredar por esse caminho, vai abrir uma janela de oportunidade para que seus opositores imponham perdas grandes ao governo. Inclusão social responsável é a crença dominante no Brasil de que o governo não pode abrir mão nem de responsabilidade fiscal nem de inclusão social.
Fonte: “Estadão”