Empresas e Receita travam na Justiça mais um cabo de guerra por conta do complexo sistema de impostos do país e da demora do Supremo Tribunal Federal (STF) para concluir um julgamento que pode significar um rombo de mais de R$ 229 bilhões no caixa do governo, quase duas vezes o valor do déficit previsto para as contas públicas em 2020.
A briga é antiga, mas ganhou corpo com uma decisão tomada pelo STF em 2017. Em março daquele ano, os ministros da Corte decidiram que o valor pago pelas empresas de ICMS — o principal imposto estadual — deve ser excluído da base de cálculo do PIS/Cofins, um tributo federal. No entanto, não deixaram claro se a decisão valeria dali para a frente ou incidiria retroativamente no que já foi recolhido.
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) — órgão que funciona como uma espécie de advogado do Ministério da Economia — questionou o STF sobre a extensão da decisão. Como a resposta não veio até agora, o julgamento, tecnicamente, não foi concluído. Por isso, empresas passaram a cobrar, em instâncias inferiores da Justiça, a aplicação da decisão do Supremo.
O imbróglio é gigantesco. A PGFN já identificou, ao menos, 25 mil ações em tramitação questionando o tema. Vivo, Hering, Telefônica, Claro e Via Varejo são algumas das empresas que encaram esse problema na Justiça. Procuradas, as companhias não quiseram comentar.
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Insegurança jurídica
Já existe até um mercado de venda desses créditos. Empresas que estão precisando de dinheiro agora têm vendido os direitos das ações para investidores com descontos que vão de 20% a 40% do valor que teriam a receber do governo.
Além do impacto nas contas das empresas, a indefinição ameaça os cofres da União. Estimativas da Receita indicam que, se o governo tivesse que devolver tudo o que recolheu nos últimos cinco anos, a conta bateria em R$ 229 bilhões. Para se ter uma ideia do estrago potencial da mudança no cálculo do PIS/Cofins, o déficit estimado para as contas públicas é de R$ 139 bilhões este ano e R$ 124 bilhões em 2020.
Gustavo Nygaard, sócio da área Tributária do TozziniFreire Advogados, observa que as decisões judiciais acabam criando tratamentos tributários diferentes para as empresas:
— Isso é muito ruim para o ambiente de negócios. No Brasil, a complexidade tributária acarreta isso: empresas menos ou mais competitivas por decisão, prática adotada ou entendimento dado em uma determinada ação apresentada à Justiça. A uniformidade acaba não sendo a tônica. Cada um tem um sistema tributário aplicado a si próprio.
Para a advogada Gabriela Miziara Jajah, especialista em direito tributário do escritório Siqueira Castro, a discussão do PIS/Cofins é um exemplo emblemático de como o complexo sistema tributário nacional gera insegurança jurídica entre empresas e traz desconfiança aos investidores:
— Todos os juízes já estão garantindo a recuperação dos créditos passados do ICMS para as empresas, e elas estão excluindo o imposto dos cálculos futuros. É mais um caso que joga lenha no embate entre Estado e contribuintes, e os dois podem acabar penalizados. O governo pode ter rombo nas contas, e o contribuinte pode ter um aumento de impostos para que o governo compense a perda que vai ter.
Conta confusa
O presidente-executivo do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), João Eloi Olenike, diz que a possibilidade de aumento de impostos para compensar futuro rombo causa apreensão:
— Para o empresário que quer montar uma empresa, fica complicado investir.
A novela tem um capítulo importante. As empresas têm buscado na Justiça descontar todo o valor do ICMS destacado nas notas ficais. O governo alega que a única parte que poderia ser descontada é o valor efetivamente recolhido aos estados. Essa diferença tem impacto financeiro grande.
Em apenas um caso analisado por técnicos do governo, um contribuinte queria descontar R$ 600 milhões. Seguindo a fórmula defendida pela União, essa conta cairia para R$ 20 milhões.
— Um dos principais argumentos do STF para excluir o ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins é que parte dos valores que são recebidos pela empresa na venda de um produto só transita no caixa da companhia. Seguindo esse raciocínio, só poderá ser devolvido o valor que vai ser recolhido ao estado — diz Alexandra Carneiro, chefe da Coordenação de Atuação Judicial da PGFN junto ao Supremo.
Carneiro destaca que a fórmula de cálculo da exclusão é um ponto que precisa ser analisado o quanto antes, sob pena de gerar uma nova discussão tributária que poderá se arrastar por mais dez ou 20 anos:
— O mais importante é como vai ser feito o cálculo. O STF precisa analisar isso.
Em nota, o Supremo informou que o processo está no gabinete da relatora, ministra Cármen Lúcia, e não há previsão de julgamento.
Na semana passada, outra decisão do STF impôs uma perda anual de R$ 16 bilhões aos cofres públicos, nas estimativas da PGFN. A Corte decidiu que empresas fora da Zona Franca de Manaus têm direito a receber créditos de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) se comprarem insumos isentos desse tributo no polo amazonense.
Fonte: “O Globo”