O retrato atual do saneamento básico no Brasil mostra 35 milhões de brasileiros sem água tratada e cem milhões — ou quase metade da população — sem coleta de esgoto.
O filme completo a partir dessa imagem revela a amplitude de um velho problema. Estudos apontam que, na prática, a falta desses serviços se traduz em variados prejuízos sociais e econômicos para o país.
Isso amplia a ocorrência de doenças e os gastos hospitalares, reduz a produtividade dos trabalhadores, prejudica a frequência e o desempenho de crianças e jovens na escola. Os danos ambientais, mais evidentes, levam a perdas no turismo e no mercado imobiliário, reduzindo o potencial de geração de emprego e renda do país.
Estudo do Instituto Trata Brasil (ITB) mostra que o país precisaria investir R$ 395 bilhões — incluindo a despesa das famílias com as contas de água e esgoto — entre 2016 e 2036 para levar serviços de saneamento básico a toda a população.
Para chegar lá, seria preciso um investimento anual médio de R$ 20 bilhões no período. Em contrapartida, haveria um impacto positivo em saúde, educação, produtividade do trabalho, emprego, turismo, entre outras áreas, que chegaria a R$ 1,12 trilhão em duas décadas.
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O país, porém, vai na direção inversa, mantendo um investimento abaixo do necessário em serviços de água e esgoto, eliminando essa oportunidade de ganho socioeconômico.
Segundo cálculos do Instituto Trata Brasil feitos a pedido do GLOBO com os dados mais recentes, no acumulado de 2017 e 2018, o Brasil investiu cerca de R$ 24 bilhões em saneamento básico, o que significa R$ 14,5 bilhões menos do que os R$ 38,5 bilhões necessários nesses dois anos iniciais para manter a meta de universalizar água e esgoto em 20 anos.
Com o aporte insuficiente, o país perdeu a chance de adicionar R$ 37,24 bilhões à economia, aponta o estudo.
Renda perdida
Moradora de São João de Meriti, na Baixada, a salgadeira Sônia Moura, de 59 anos, convive com sequelas da chicungunha, doença transmitida por mosquitos do gênero Aedes, em um dos braços. Com esgoto constantemente empoçado na porta de casa e entulhos nas calçadas, ela conta que teve sua produtividade limitada pela doença, comum em áreas sem saneamento:
— Fiquei com uma dor constante no braço, o que atrapalha meu trabalho, já que uso a força para abrir as massas e fazer os salgados. Além disso, como o cheiro (do esgoto) aqui é muito forte, fico com as janelas fechadas todo o tempo, para evitar moscas.
Sônia mora em cima do salão de beleza de Geiza Fonseca, de 38 anos, que também reclama das perdas. Clientes potenciais acabam desviando do estabelecimento devido ao esgoto que passa na porta, diz a empreendedora:
— Não sinto tanto porque já tenho clientes fixos, mas as pessoas que passam na porta e olham não vão entrar. Dificulta expandir o negócio e prejudica a imagem do salão — conta Geiza, que diz já ter feito muitas reclamações com a prefeitura sem solução.
Procurada pelo GLOBO, a Prefeitura de São João de Meriti não respondeu.
Enquanto o país deixou de gastar R$ 14,5 bilhões — pouco mais que os R$ 12 bilhões orçados para todo o projeto da transposição do Rio São Francisco — com um tema tão fundamental, amargou, só em 2018, um custo de R$ 18,08 bilhões com 718.996 afastamentos do trabalho em decorrência de doenças relacionadas à falta de saneamento, como dengue e diarreia. Os dados foram compilados pelo Painel Saneamento Brasil, do ITB.
— É claro que o aporte integral não levaria esse custo com afastamentos a zero de um ano para outro. Mas é um custo muito alto hoje. Perto de R$ 10 bilhões desse total são bancados por empresas privadas e pelo poder público. O restante são as perdas de quem trabalha por conta própria, como camelôs, motoristas de aplicativo. Quando adoecem, eles perdem a capacidade de gerar renda — diz Fernando Garcia, pesquisador do Trata Brasil.
A perda vai além. Também em 2018 houve 233.880 internações hospitalares em decorrência de doenças de veiculação hídrica, a um custo de R$ 90,21 milhões.
Ele alerta que o atraso na expansão dos serviços de água e esgoto para todos vai minando ganhos socioeconômicos, jogando para a frente o prazo para a universalização do saneamento, que países desenvolvidos atingiram há décadas.
— Se o aporte em saneamento fosse feito de acordo com o cálculo apresentado pelo estudo que fizemos, tínhamos a chance de ganhar R$ 1,12 trilhão em 20 anos. Esse ganho já está encolhendo e já está claro que, no ritmo atual, não teremos saneamento para todos nesse prazo. É preciso acelerar o processo, estamos atrasados — destaca Garcia.
Segundo o pesquisador, pelo menos desde 2015 os investimentos em várias regiões estão num patamar abaixo do que é preciso só para manter a infraestrutura de água e esgoto existente em operação.
A consultora ambiental Marilene Ramos, ex-diretora da Área de Infraestrutura e Saneamento do BNDES e ex-presidente do Instituto Estadual do Ambiente (Inea), diz que a crise atual da Cedae, a empresa de saneamento do Rio, é um exemplo claro dos efeitos negativos do investimento abaixo do necessário:
— A crise da água vivida no Rio, com a má qualidade da água distribuída pela Cedae, é o exemplo mais transparente de como a falta de investimento traz enormes prejuízos para a sociedade, à saúde, às finanças, ao trabalho. Estamos perdendo a luta contra a degradação dos corpos hídricos, e isso tem custo incalculável. É preciso mudar os players, estamos perdendo o jogo de goleada.
Cinco mil piscinas olímpicas de esgoto
Em 2017, o Brasil despejava o equivalente a 5.622 piscinas olímpicas de esgoto não tratado por dia no solo, córregos, rios, mar e outros cursos d’água, segundo estimativas do Trata Brasil.
Isso está na contaminação dos rios que chegam ao Guandu, raiz do problema que resultou na distribuição de água com cor, gosto e sabor de terra pela Cedae a 9 milhões de consumidores no Rio.
Em várias regiões do país, a contaminação de praias e mananciais impede o desenvolvimento do turismo. No horizonte de universalização do saneamento em 20 anos, a renda do setor cresceria em R$ 2,1 bilhões ao ano, segundo cálculos do Trata Brasil.
Ivone Pedro Barbosa, de 35 anos, mora no bairro Pilar, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, município que está entre os dez piores do Brasil em água e esgoto apesar de integrar a segunda região metropolitana mais rica do país. Conviver com a falta d’água e esgoto a céu aberto, ela conta, é colecionar prejuízos:
— Já fiquei quase uma semana presa em casa, porque não tinha como sair sem colocar o pé na água suja. Quando chove, o rio transborda e alaga as ruas. Se eu saio, é com água na canela e risco de doença.
A Prefeitura de Caxias informou que obras de melhorias em saneamento e pavimentação em áreas que incluem o Pilar estão em processo de licitação. E que faz regularmente a desobstrução das redes coletoras de esgoto, entupidas por detritos que dificultam o escoamento da água das chuvas. A coleta de lixo, item que também integra o saneamento básico, é outro serviço muito deficiente no país.
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Para o economista Claudio Frischtak, da Inter.B Consultoria, falta compreensão da sociedade sobre a importância do saneamento para o desenvolvimento do país, o que acaba levando a classe política a tirar o tema das prioridades.
— Não se entende o impacto colossal da falta do saneamento. Faz as pessoas adoecerem, as crianças perdem dias de aula e têm rendimento escolar menor. O trabalhador também perde dias de trabalho, o que afeta a renda e a produtividade. Isso resulta em diversas doenças, gerando gastos com internações e medicamentos. No fim das contas, afeta a produtividade do país — diz o especialista. — O uso político das estatais de saneamento é uma prática criminosa.
Estímulo ao emprego
Jerson Kelman, ex-presidente da Sabesp (empresa de saneamento de São Paulo), da Agência Nacional de Águas e professor da Coppe/UFRJ, subli-nha que o Brasil está mais atrasado no setor que outros países em desenvolvimento.
Com 83,6% da população com acesso à água e 53,2% com acesso a esgoto, está atrás de Bolívia, Chile, Peru e África do Sul.
— Cada R$ 1 investido em saneamento traz R$ 1,20 em renda, emprego. Tem impacto relevante na construção civil, que vem se destacando como um pilar importante na geração de vagas formais no país, que é o que se precisa quando se tem quase 12 milhões de desempregados — pondera.
O levantamento do Trata Brasil mostra que, de 2004 a 2016, as obras de saneamento criaram 142 mil empregos na construção civil, gerando R$ 13,6 bilhões em renda anual.
Fonte: “O Globo”