Uma revolução avança sobre o campo. Demorou, mas a transformação digital chegou ao mundo agro. “Os próximos dez anos serão marcados por mudanças dramáticas no sistema agroalimentar”, apostam os pesquisadores Nikola Trendov, Samuel Varas e Meng Zeng, no relatório Digital Technologies in Agriculture and Rural Areas, lançado pela FAO, braço da ONU para alimentação e agricultura.
Blockchain, internet das coisas (IoT), inteligência artificial, realidade imersiva, reconhecimento facial, ciência de dados, análise preditiva, computação em nuvem, robótica… A adoção em massa de tecnologias inovadoras mudará a forma como usamos a terra. Afetará não apenas o fazendeiro, mas todas as etapas da cadeia produtiva — até o consumidor que, ultraconectado, está mais bem informado, consciente e exigente. “Do campo ao garfo” é o lema da agricultura digital. A transformação do agronegócio, preveem os especialistas da FAO, tende a ser a mais “disruptiva” entre todas as indústrias. Movimenta US$ 7,8 trilhões e emprega 40% da força de trabalho global.
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Startups voltadas para o campo despertam a atenção das grandes do setor. Fusões e parcerias são firmadas. Gigantes da tecnologia investem em uma área até então pouco conhecida por elas. Empresas de telecomunicação dedicam especial atenção às zonas rurais. Os investimentos globais nas chamadas agtechs somaram US$ 16,9 bilhões em 2018 — um crescimento de 43% em relação a 2017 e cinco vezes maior se comparado a 2012, segundo o AgFunder Agrifood Tech Investing Report, da AgFunder, plataforma global de investimentos do mercado de tecnologia para o agronegócio, sediada no Vale do Silício. “Os Estados Unidos ainda dominam o mercado, mas China, Índia e Brasil contribuíram com alguns dos maiores negócios do ano”, lê-se no documento. De fato, o ecossistema nacional fervilha.
Um dos marcos mais simbólicos da remodelação pela qual o agronegócio passa é de 2013. Naquele ano, a gigante americana Monsanto desembolsou cerca de US$ 1,1 bilhão pela californiana The Climate Corporation, o primeiro unicórnio global do universo das agtechs. Fundada em 2006 por David Friedberg e Siraj Khaliq, ex-executivos do Google, a empresa desenvolveu um aplicativo, o Climate FieldView, que, ao analisar dados meteorológicos e de campo, fornece informações precisas ao fazendeiro sobre o melhor momento para plantar. A transação bilionária colocou as startups no radar do mercado. Desde então, a efervescência em torno da agricultura 4.0 só faz aumentar. Basta dar uma olhada em alguns dos movimentos do setor nos últimos dois anos.
A agricultura do futuro é a de precisão. Pelo método de cultivo tradicional, a plantação de uma mesma cultura, por exemplo, é tratada toda da mesma forma. Graças às novas ferramentas, a partir de análise e cruzamento de informações sobre o clima e o solo, é possível determinar o manejo mais adequado para cada pedacinho da lavoura. Com ações e intervenções tão específicas, o consumo de água e de insumos cai — consequentemente, diminuem os custos de produção e a contaminação do solo. “Na agricultura 4.0, as fazendas se transformam em fábricas orgânicas”, define Ulisses Mello, diretor do laboratório de pesquisa da IBM Brasil. A partir de dados enviados do campo para a tela do computador, do tablet ou do celular, os fazendeiros hi-tech conseguem, como dizem, “ajustar o que a planta está fazendo” — como se ajustam máquinas, engrenagens e circuitos. Tamanha precisão torna a agricultura 4.0 mais eficiente, claro, mas também mais sustentável, transparente, resiliente ao clima e inclusiva.
O trabalho no campo muda — e a transformação é radical. Em muitos casos, é como se a fazenda fosse para dentro do escritório. É assim na CIA, a Central de Integração Agroindustrial, da Raízen, empresa de energia, que integra todas etapas do processo — do cultivo da cana, com a produção de açúcar, etanol e bioenergia, à comercialização, logística e distribuição de combustíveis. Em uma das salas da companhia em Piracicaba, a 156 quilômetros da capital paulista, 48 torres, com quatro monitores cada uma, fazem o monitoramento e a programação, 24 horas por dia, das operações agrícolas de 450 mil dos 900 mil hectares de cana da empresa no país. O controle dos tratores e das colhedoras é minucioso. Graças a um software produzido pela celebrada agtech Solinftec, os analistas da Raízen conseguem determinar, em tempo real, onde e o que cada máquina está fazendo. E mais. O programa da agtech indica ainda quando os veículos necessitam de revisão ou reparo — frequentemente, antes que eles quebrem. De acordo com Thaís Fornícola, gerente de governança operacional da empresa, graças ao trabalho da CIA a eficiência aumentou 15%. Um único analista da central faz o serviço que, na agricultura tradicional, requer, no mínimo, cinco frentes de trabalho.
A transformação digital tem o poder de integrar todas as etapas da cadeia produtiva. Essa conexão é importante na busca por um sistema mais sustentável. Para se ter uma ideia, fiquemos somente na fase pré-colheita do cultivo de folhosas. De cada cem sementes plantadas, apenas 65 são colhidas — 35 são inutilizadas por causa de intempéries e pragas, em decorrência do manuseio inadequado e/ou são pisoteadas e/ou esmagadas por máquinas, segundo Geraldo Maia, cofundador da Pink Farms, a maior fazenda vertical urbana da América Latina. “Não basta ser eficiente apenas dentro das fazendas”, diz Ronan Damasco, diretor nacional de tecnologia da Microsoft Brasil.
+ Hélio Beltrão: Anarcocapitalismo ambiental
Não tem como ser diferente. A agricultura do modo como a conhecemos hoje vai se revelando insustentável. A atividade agrícola consome 70% da água potável do planeta — metade é desperdiçada em irrigações malfeitas e cálculos errados de uso. Se o campo reduzisse o consumo em 10%, haveria o suficiente para abastecer duas vezes a população mundial, indica a FAO. “Todos estão atrás de soluções para a segurança alimentar”, diz Kleber Alencar, diretor executivo da Accenture.
“A agitação toma conta das universidades e dos centros que abrigam agtechs.” Como diz Gerhard Bohne, presidente da divisão agrícola da Bayer no Brasil, a inovação nunca foi tão importante para a agricultura quanto agora.
Fonte: “Época Negócios”