Em vésperas de Copa do Mundo que, ouço dizer, não é mais nossa, vale dar algumas boladas sobre o “total” – esse esporte que, roubado da Inglaterra, virou um brasileirismo.
Com ele, criamos uma futebologia que, equilibradamente, reúne teoria e prática. Temos os comentaristas capazes de invocar jogos e jogadas memoráveis – “gols de placa” ou os erros clamorosos; e times de ex-jogadores e árbitros proporcionando uma visão de “dentro” porque “falar (e criticar) é fácil”, mas “fazer (ou governar) é difícil”.
Atendida essa brasileiríssima premissa, nossa futebologia tem uma poética e uma álgebra. A poética aborda o lado imprevisível; a álgebra que se concentra na tática e na estratégia e, tal como eu fazia com o meu time de botão, ela discorre tão indômita, quanto a economia, sobre os encadeamentos prováveis da vitória. Mas como vitória e derrota são no esporte e no futebol parte da mesma moeda, a futebolística tem a capa de uma disciplina exata e o conteúdo de um sujeito diante de uma mesa de jogo com o coração na mão e as mãos geladas, torcendo para que caia no número jogado.
É revelador que o futebol seja um “jogo” e não uma partida ou “match”. Uma partida está mais para o lado de um encontro de iguais do que um “jogo” em que fatores imponderáveis intervêm. Como brasileirismo, o futebol é um escudo de autoafirmação com uma ambiguidade típica: é algo que praticamos com excelência, mas que não podemos prever o resultado. Trata-se de mais um traço da nossa proverbial duplicidade: somos os melhores do mundo, mas nem sempre podemos provar nossa excelência. Ela não é precisa e volta a nos relacionar o imponderável, que aumenta a popularidade do futebol, tornando-o tanto sintoma quanto um esporte e indústria de massa. Quando ganhamos, o mundo vai bem; quando perdemos, viramos desgraçados.
Uma vez, ouvi a história de um grande jogador de futebol, um goleador imbatível com um nome dissilábico – talvez Mimi, Zezé ou Mumu – cuja mulher o traía. Era atacante forte. Um cavalo, como se dizia naquele tempo em que os brasileiros eram quase anões. A mulher era bonita e exibicionista. “Meu marido é artilheiro, mas não faz gols nimim”, lamuriava, quando bebia uns chopes. Logo, um entregador de lavanderia (o goleador só andava de ternos de linho, cuja brancura tinha o ar da neve que não se via no Brasil) começou a goleá-la.
Enquanto o craque deleitava os teóricos da futebologia, fazendo gols em campo, o amante metia quatro ou cinco na mulher. Um dia, porém, baixou uma dúvida: e se fosse descoberto? “Ele te mataria a pontapés!”, disse a musa invicta do campeão. Então, vamos nos encontrar na hora do jogo. Solução perfeita, porque ninguém – exceto os deuses – pode estar em dois lugares ao mesmo tempo e, em 90 minutos, mais as preliminares ritualísticas das entrevistas, rapapés, fotografias e voltas olímpicas, teremos não só o tempo do amor, mas a garantia de um adultério dantesco e capaz de levar-nos ao inferno. Devo dizer que a mulher havia lido um livreto financiado pelo Ministério do Povo, chamado Dante para Idiotas, no qual o bardo era simplificado.
Então, combinamos assim, disse eu a mim mesmo quando, em 1982, publiquei Universo do Futebol – graças a Carlos Roberto Maciel Levi e Max Perlingeiro -, no qual reuni ensaios de pioneiros do estudo desse esporte, como Luiz Felipe Baeta Neves, Simoni Guedes e Arno Vogel. Quando terminava minha contribuição a esse livro que hoje faz 32 anos, num tempo em que havia mais futebol do que futebologia, mercadologia e demissociologia, lembrei-me do caso acima. Descobri, então, que o corno-goleador sabia de tudo, mas ficava calado porque, quando não fazia gols, era compensado pelo seu duplo, que produzia escores sensacionais.
Hoje, quando vejo a nossa contumaz ambiguidade no atraso dos estádios e na ausência de infraestrutura e segurança, gerando protestos que usam a Fifa como o bode expiatório para desmascarar a insinceridade do governo, penso nessa duplicidade do futebol e da vida. Sempre exata de um lado e imprevisível de outro. O nosso amado e puro futebol, roubado dos ingleses imperialistas, brancos azedos e civilizados que sempre faziam gols, transformou-se numa poderosa arma de protestos capitais contra a costumeira corrupção. E, aí, eu pergunto se o futebol é mesmo o ópio do povo. Pois, tal como o goleador, ele tem dois lados. Ele joga plausivelmente no campo, mas não deixa de pensar na liberdade imprevisível da mulher amada.
Fonte: Estadão, 14/05/2014.
No Comment! Be the first one.