Gilmar Mendes será, daqui a dois anos, o único ministro do STF não indicado pelo lulopetismo. À “Folha” (3/11), ele alertou para o risco de que o Supremo se transforme numa “corte bolivariana”. Seria o lulopetismo uma versão descolorida do “bolivarianismo”?
A revolução “bolivariana” definiu como meta política a unificação da América Latina contra os EUA e, como meta econômica, a implantação de um sistema estatista. O lulopetismo não compartilha tais metas. Na economia, procura modernizar o capitalismo de estado varguista. Na política, almeja apenas uma perene hegemonia. O regime chavista é revolucionário; o lulopetismo é populista e conservador. Sob o chavismo, a Venezuela tenta ser o que Cuba tenta deixar de ser, afundando no vórtice de uma crise terminal. Sob o lulopetismo, o Brasil reitera seus próprios anacronismos, desperdiçando oportunidades históricas.
Há uma diferença crucial de origem. O movimento “bolivariano” é fruto da ruptura: nasceu do colapso da democracia oligárquica venezuelana, no “Caracazzo”, o levante popular de 1989, e consolidou-se após o frustrado golpe antichavista de 2002. O lulopetismo, pelo contrário, é fruto da continuidade: surgiu com a redemocratização e conquistou o Palácio na moldura da estabilização da democracia. O chavismo substituiu a desmoralizada elite política venezuelana; o lulopetismo integrou-se às elites políticas tradicionais, até converter-se no fiador principal de seus negócios e interesses.
Palavras servem para iludir. Os ataques “bolivarianos” da campanha de Dilma contra Aécio funcionaram como toque de reunir para os movimentos sociais, o PSOL e os intelectuais de esquerda. Confrontado com o risco de derrota, o lulopetismo precisava recuperar uma franja periférica do eleitorado que se dispersava. Concluída a disputa, o governo realiza o giro ortodoxo, abandonando a “nova matriz econômica”. O estelionato, anunciado pela elevação dos juros, tem roteiro conhecido: recomposição de preços de combustíveis, choque de tarifas de energia, ajuste fiscal. Os chavistas vestem-se de vermelho o tempo todo; Lula e Dilma trocam o vermelho pelo branco assim que as urnas se fecham.
Palavras têm alguma importância. Na sua Resolução Política pós-eleitoral, o PT toca os acordes de uma marcha “bolivariana” para acusar a oposição de representar o “retrocesso neoliberal”, articular “manobras golpistas” e fomentar “o machismo, o racismo, o preconceito, o ódio, a intolerância”. O lulopetismo, um fruto da democracia, não aprendeu até hoje a regra de ouro do pluralismo político: a legitimidade da oposição. O seu único traço comum com o “bolivarianismo” encontra-se nessa hostilidade visceral à convivência democrática entre “verdades” distintas e concorrentes. O PT não é “bolivariano”, mas carrega no seu DNA a convicção pervertida dos antigos partidos comunistas: imagina-se portador da Chave da História.
O alerta de Gilmar Mendes, formulado como um equívoco conceitual, deve ser refraseado. Sob o influxo das nomeações lulopetistas, o STF não se transformará numa “corte bolivariana”, pois não será posto a serviço de um projeto político revolucionário. Contudo, depois da experiência do “mensalão” e na hora da eclosão do escândalo na Petrobras, o governo procurará submeter o Supremo a um torno mecânico implacável, convertendo-o em Tribunal da Absolvição.
O contexto faz a diferença. Na “pátria bolivariana”, a independência dos Poderes só existe como preceito constitucional irrelevante; no Brasil, apesar de tudo, o preceito conserva sua força, como evidencia o decreto legislativo que fulminou os “conselhos participativos”. Compete ao Senado avalizar as indicações presidenciais para o STF. Diante de uma opinião pública atenta, os senadores encararão o dever de vetar a nomeação de “juízes do Partido”. A Venezuela não é aqui.
Fonte: Folha de S. Paulo, 08/11/2014.
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