Como pensar o governo Bolsonaro, que é liberal na economia, conservador nos costumes e ambivalente nas suas prática e retórica iliberais? Identifico focos de tensão cujo desenlace definirá a natureza iliberal ou não de seu governo. Retomo a questão após discutir essas três dimensões.
Os estudos empíricos de preferências do eleitorado passaram desde os anos 1980 a considerar duas dimensões —economia e comportamento.
Podemos, assim, identificar grupos do eleitorado que combinam, por exemplo, preferências pró-mercado com valores conservadores na dimensão do comportamento.
A onda populista recente, no entanto, trouxe à baila uma dimensão faltante: o posicionamento quanto ao “rule of law” (império da lei). Líderes populistas ascendem ao poder em eleições competitivas, mas aderem a uma pauta de pouco respeito à separação de poderes que combinam com uma retórica nacionalista e de intervencionismo governamental.
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Retomando a questão do iliberalismo de Bolsonaro, o ponto a destacar é que a escolha de Sergio Moro representou aquilo que a literatura chama de “compromisso crível” —a promessa de que o governo não cruzará a linha demarcatória do iliberalismo.
A promessa é “crível” pelo custo político elevadíssimo de sua eventual saída, mas que pode acontecer numa sucessão de crises que afetem fortemente a popularidade presidencial. A primeira delas já se instalou.
O segundo foco de tensão diz respeito à economia na qual o anti-internacionalismo na política externa conflita com a agenda econômica doméstica, liberalizante e pró-mercado.
A nomeação de Paulo Guedes cumpre, mutatis mutandis, papel similar ao de Moro, dando credibilidade à promessa de mudança estrutural.
Reformas ultraliberalizantes já foram implementadas por regimes democráticos e também por autoritários. Se naufragarem, aumentarão os incentivos para iniciativas e ativismo nas outras dimensões.
O terceiro foco diz respeito aos militares em um inédito papel como fiel da balança no novo ambiente institucional. A credibilidade desse compromisso é fortemente influenciada pelo legado histórico.
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O governo Bolsonaro assenta-se em uma maioria negativa: construída pela rejeição às alternativas, o que cria vulnerabilidades. Se superar os riscos envolvidos, entrará na história como um governo de direita conservador e pró-mercado, com retórica populista, mas o regime não será iliberal de facto.
Essa conclusão independe do eventual malogro ou êxito do governo em implementar sua agenda, para o que concorrerão outros fatores inclusive a qualificação técnica de seus quadros.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 21/01/2019