Luís XIV, o Rei Sol, era, afinal, um sujeito modesto. A frase mais famosa a ele atribuída é citada como síntese do espírito absolutista: “O Estado sou eu”. É uma declaração quase franciscana, quando comparada com as palavras do presidente Jair Messias Bolsonaro: “O Estado é laico, mas nós somos cristãos. Ou, para plagiar minha querida Damares, nós somos terrivelmente cristãos. E esse espírito deve estar presente em todos os Poderes”. Em outras palavras, o cristianismo, pelo menos o do presidente e de seus companheiros, deve sobrepor-se à laicidade do Estado brasileiro e, portanto, permear os Poderes da República. Mais uma vez é indisfarçável o desprezo às instituições.
Esse desprezo ficou evidente em muitas ocasiões, como no dia 30 de junho, quando ele tuitou para cumprimentar os participantes de passeatas a favor da Lava Jato: “Respeito todas as instituições, mas acima delas está o povo, meu patrão, a quem devo lealdade”.
Instituições incluem, por exemplo, o Código Penal. Se o povo está acima do código, poderá determinar a aplicação da pena de morte a um condenado? Poderá inocentar um culpado e condenar um inocente? E quem dirá se a manifestação terá partido realmente do “povo”? E como se identifica, nos eventos políticos, essa entidade tão difícil de definir? Pelo tamanho da multidão? Pela natureza de seus protestos ou reivindicações? Se for pelo tamanho, havia mais “povo” nas manifestações de 15 de maio, quando se protestou principalmente contra os cortes de verbas para a educação.
Nenhum crítico do governo e de sua política educacional falou em povo acima das instituições. Nem os portadores da bandeira “Lula livre”, também presentes nas passeatas, chegaram a esse ponto. Questionaram a lisura do processo, falaram em falta de provas e reclamaram de uma suposta condenação política, isto é, de uma violação da ordem jurídica.
O nome de Luís XIV era Louis-Dieudonné. “Dado por Deus” é a tradução da segunda parte. A competição continua. Bolsonaro, segundo proclamou seu ministro Onyx Lorenzoni em reunião com evangélicos, é “o escolhido”. Além disso, Messias é o seu segundo nome. O presidente parece levar esse detalhe muito a sério, mas à sua maneira, naturalmente.
Leia mais
Bolsonaro e os 25 milhões sem os pinos do emprego
Campos, o liberal que ousava planejar
Falando com frequência em nome do cristianismo, ou de seu cristianismo, esse Messias costuma valorizar especialmente um ramo da cultura cristã. Ao participar na quarta-feira de uma cerimônia religiosa na Câmara dos Deputados, ele atribuiu aos evangélicos papel central numa suposta inflexão da pauta moral nos últimos anos. Terá havido alguma contribuição positiva de católicos, judeus, muçulmanos, budistas, espíritas, umbandistas, candomblecistas e adeptos de outros credos menos conhecidos? Ou, quem sabe, também de agnósticos e ateus?
De vez em quando o Messias do Alvorada se mostra mais cuidadoso e passa a falar sobre respeito a todos os credos. Em momentos mais delicados chega a negar qualquer confusão entre crença religiosa e política. Mas a tentação parece irresistível. Manifestou-se de novo na quarta-feira, quando o presidente voltou a mencionar a possível indicação de um evangélico – “terrivelmente evangélico” – para o Supremo Tribunal Federal (STF).
“Não me venha a imprensa dizer que eu quero misturar a Justiça com a religião”, tem repetido o presidente. Mas está misturando, inegavelmente. “Não está na hora de termos um ministro do Supremo Tribunal evangélico?”, havia perguntado Jair Messias Bolsonaro em Goiânia, em maio, numa convenção religiosa. Foi muito aplaudido. Estaria o auditório aprovando a mistura?
A simples menção à crença religiosa do possível indicado comprova a importância atribuída a esse fator. A pergunta a respeito da oportunidade – será hora, enfim? – torna mais evidente a preocupação. Um evangélico teria influência, por exemplo, num debate como o da criminalização da homofobia? Mas se esse é o problema, ou um dos problemas, que tal indicar um conservador de qualquer credo, sem preferência por uma religião?
Tendências diferentes podem favorecer decisões equilibradas numa corte como o STF. Mas decisões sempre envolverão interpretações das normas constitucionais e de seu alcance. Interpretações, no entanto, exigem noções de teoria do Direito, envolvem critérios técnicos e requerem competência e equilíbrio. Tudo isso vai além do moralismo, do bom-mocismo e de qualquer padrão de religiosidade.
Pela Constituição, o indicado para um posto no STF deve destacar-se pelo notório saber e ter reputação ilibada. Na prática, a indicação pode ocasionalmente contornar algum requisito, ou os dois, mas isso jamais ocorre de modo explícito. Formalmente, as instituições são respeitadas. Não há notícia, no entanto, de indicações baseadas explicitamente em critérios extraconstitucionais, como a religião.
Mas esse critério foi mencionado mais de uma vez pelo presidente Messias. Convém, portanto, observar com cuidado qualquer indicação para o STF. A seleção de um evangélico motivará uma preocupação muito justa: quem aceitar a escolha com base em critério religioso será um juiz confiável, mesmo dispondo de qualidades técnicas? Será um profissional dotado de autorrespeito?
Essas questões podem ser irrelevantes para quem defende a imposição de sua religiosidade aos Poderes da República e afirma dever mais lealdade ao “povo” do que às instituições. Mas são extremamente relevantes para quem prefere uma vida ordenada segundo padrões de civilidade próprios de uma democracia liberal.
Uma segunda frase famosa é atribuída a Luís XIV: “Depois de mim, o dilúvio”. De novo, Messias poderá superá-lo, se tiver tanto êxito quanto outros populistas na devastação das instituições. Alguns de seus ídolos da extrema direita estão avançando nessa tarefa na periferia da União Europeia.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 14/07/2019