Introdução
Neste estudo, pretendo mostrar a atualidade da obra mais famosa de F.A. Hayek, “O caminho da servidão”, em relação ao Brasil contemporâneo.
A tese central da obra de Hayek é a de que o planejamento estatal da economia inevitavelmente leva a práticas cada vez mais restritivas de liberdade, até que se dê a instalação de um governo totalitário.
Tentarei mostrar como as idéias mais difundidas em nosso ambiente intelectual e cultural, e especialmente no âmbito jurídico, têm-nos diminuído progressivamente o valor da liberdade e nos levado a aceitar do Estado uma atitude crescentemente liberticida. Como no livro de Hayek, dou ênfase às conseqüências sobre a liberdade individual – até porque as demonstrações das vantagens materiais dos regimes liberais são mais acessíveis ao olhar comum.
O caminho ignorado
No primeiro capítulo do livro, “O caminho abandonado”, Hayek alerta a Inglaterra contra o abandono do liberalismo, que prova ser responsável pela prosperidade e desenvolvimento recentes do país. Ele mostra que ser a concorrência é a única forma de aproveitar o dom criador que se desenvolve no ser humano livre. Aqui no Brasil, porém, é mais adequado falar-se num caminho ignorado. Não chegamos a ter, realmente, um período liberal. O século XIX é referido como a era do liberalismo no mundo, mas por aqui as coisas eram diferentes: é o que nos mostra o Barão e Visconde de Mauá, a quem não se pode negar conhecimento de causa:
“Clama-se que no Brasil tudo se espera do Governo e que a iniciativa individual não existe! E como não há de ser assim se tudo quanto se refere à ação do capital, desde que este se aglomera para qualquer fim de utilidade pública ou particular, em que a liberdade das convenções devia ser o princípio regulador, esbarra-se logo de frente com péssimas leis preventivas, e quando estas não bastam, a intervenção indébita do Governo aparece na qualidade de tutor? O fato pois, (…) de tudo esperarse do governo, é conseqüência necessária do regime legal a que entregaram o país os que têm governado.” – Visconde de Mauá – Autobiografia – 2ª Ed, Z. VALVERDE, 1943, p 219.
Países como Inglaterra e Estados Unidos puderam suportar os erros de doutrinas antiliberais por já terem antes acumulado riquezas consideráveis e, principalmente, registrado em suas histórias a defesa da liberdade econômica e os resultados daí advindos. No Brasil isso não se deu: os surtos de crescimento no século XX foram resultados do desenvolvimentismo, em que o Estado centralizador foi o grande promotor da industrialização. Assim, o que noutros lugares apenas atravancou temporariamente o crescimento fabuloso de anos e anos aqui significou o fechamento das portas à liberdade individual, antes mesmo que ela e seu corolário do poder da ação do indivíduo pudessem consolidar-se como um valor da cultura. Um dos resultados disso é que, hoje, apenas 41% dos brasileiros acreditam na democracia, e 54% não se importariam em ter governo autoritário para resolver os problemas econômicos – um grande passo rumo à servidão, diria Hayek.
Vejamos algumas das causas pelas quais isso é possível.
As idéias pavimentam o caminho
A idéia de que a difusão de idéias antiliberais corrói o valor da liberdade e torna possível a instauração progressiva, por meios democráticos, de governos totalitários é um ensinamento fundamental de “O Caminho da Servidão”. Uma dessas idéias é o determinismo histórico, que ignora o poder da ação do indivíduo como promotor das mudanças e mina, assim, o liberalismo atacando-o em seu alicerce que é o individualismo.
Por força da influência de Hegel e Marx em nosso meio acadêmico, o fenômeno da mera mudança das idéias que passaram a orientar a política é tido como uma mudança da verdade e do mundo mesmo, por um processo de dialética da História, em que a tese seria o liberalismo, a antítese seria o socialismo, e a síntese seria o “Estado Democrático de Direito”, um dos apelidos do Estado planejador e provedor (não tanto quanto tirador, bem entendido).
Tal idéia é basicamente a mesma que Hayek aponta como uma das “raízes socialistas do nazismo”: as fases dialéticas seriam o absolutismo, o liberalismo e o totalitarismo, como em Carl Schmitt. A semelhança está tanto na crença de que haja um fim da História, quanto nos próprios modelos tidos como fase última do processo: afinal, a diferença do totalitarismo para esse suposto meio-termo da terceira-via é a mesma da árvore para sua semente.
No capítulo “O fim da verdade”, Hayek aponta fenômenos facilmente identificáveis em nosso país atualmente. Nos meios culturais, por exemplo, há uma quantidade formidável de propaganda esquerdista. Em grande parte isto se dá devido à influência de Gramsci sobre nossa intelligentsia – são freqüentes as obras acadêmicas com suas inúmeras referências diretas e indiretas ao ideólogo da “revolução cultural”. A coisa é de tal monta que em muitos casos, principalmente na mídia, parece não haver sequer um engajamento político consciente do propagandista, o que indica estágio avançado do processo gramsciano de instauração da “hegemonia”.
A classe intelectual brasileira em peso, ao se referir ao período no qual o individualismo foi sendo preterido em favor das idéias coletivistas nos países que tiveram experiências liberais duradouras, parece ter uma atitude similar. A crise de 1929 e a depressão seguinte, por exemplo, são tidas como provas de que o liberalismo leva à desordem e precisa ser controlado pelo Estado. Não há, obviamente, qualquer tentativa de demonstração e aceita-se essa doxa como um dogma religioso.
Princípio da Legalidade vs. Estado Democrático de Direito
Esse ambiente cultural assegura a existência de uma tendência dominante entre os juristas pátrios: praticamente todas as teses de direito publicadas e adotadas no meio acadêmico nas últimas décadas parecem ter como premissas, em maior ou menor grau, o materialismo histórico já referido, e que a falibilidade do liberalismo torna inevitável a intervenção do Estado. Essa tendência influenciou a Constituição de 1988, dando novos rumos ao direito, e ao Estado que se diz seu respeitador.
Tem havido, então, uma transformação do Direito no Brasil. O chamado direito alternativo, tão popular entre juizes do Rio Grande do Sul, é exemplo. Baseado numa lógica marxista, esse movimento é, pois, usurpador da propriedade e da liberdade. Fundamenta-se, porém, no afastamento da lei justificado por ser ela injusto instrumento de dominação de classes. Ainda que cause transtornos, as decisões tomadas com base nele são normalmente revistas nas cortes superiores. Assim, ameaça maior reside, mesmo, na mudança da ordem constitucional. Vejamos um sintoma disto. O livro de direito constitucional mais utilizado nas universidades brasileiras aponta:
“Assegurar a todos existência digna (…) não será tarefa fácil num sistema de base capitalista (…). É que a justiça social só se realiza mediante eqüitativa distribuição da riqueza. (…) A História mostra que a injustiça é inerente ao modo de produção capitalista (…). Algumas providências constitucionais formam agora um conjunto de direitos sociais que (…) podem tornar menos abstrata a promessa de justiça social” – SILVA, José Afonso da – Curso de Direito Constitucional Positivo, 23ª ed, Malheiros, São Paulo, 2003, p. 76.
São, portanto, atribuídas ao Estado, no texto constitucional brasileiro, responsabilidades que a História mostra serem só cumpridas eficazmente pela ação dos indivíduos. Ali se diz serem objetivos fundamentais da República “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “erradicar a pobreza”, “reduzir as desigualdades sociais”, “promover o bem de todos”. São belos termos, mas não têm sentido preciso, o que traz os problemas salientados por Hayek: podemos ver que uma sociedade construída pelo Estado rejeita, por definição, os predicativos livre, justa e solidária. Livre não será, porque a situação dos indivíduos será produto de decisões da burocracia a quem se incumbiu a tarefa de construir a sociedade, e não de suas próprias decisões tomadas em liberdade. Justa também não, por causa da necessária incompatibilidade entre o código de valores morais dos que decidem e o dos que lhes são subordinados. E solidária tampouco, porque o altruísmo só o é quando voluntário, perdendo sua essência ao ser despido de sua livre motivação. Afinal, o ato feito sob coerção não visa ao bem alheio, mas sim à preservação do bem do agente.
Só a liberdade e o poder criador do homem livre podem aos poucos orientar a sociedade para aquelas finalidades. A solução das incompatibilidades entre os conceitos particulares de justiça e de prioridades é dada pelo livre acordo de vontades entre os indivíduos, já que nesse caso, como ensina Hayek, não há a quem responsabilizar pela situação pessoal senão a si próprio. Mas, como funciona isto quando a tarefa é incumbida ao Estado?
Ora, para que o Estado possa pôr em prática o planejamento central com que pretende perseguir suas finalidades de redistribuição material, bemestar geral e “justiça social” , é-lhe necessário impor seus meios, que ele julga serem justificados por seus fins, mas com amparo constitucional. Hayek mostra como o Estado planejador não pode submeter-se ao princípio da legalidade, ao Estado de Direito em sentido clássico. Eis aí, pois, um dos grandes pilares da execução do planejamento social a que são tão afeitos os políticos que nos têm governado, pelo menos desde os militares. Seguindo a tática de mudar o significado dos conceitos já aceitos pelas pessoas para transmitir lhes novos valores, o princípio da legalidade, nominalmente mantido em nossa Constituição, foi contornado por meio da positivação de inúmeras expressões sem significado claro, verdadeiros cheques em branco ao poder discricionário dos agentes do Estado.
Dentre esses cheques, o que tem mais aceitação na praça é a expressão função social, a cujo cumprimento tudo o que é direito individual vem sendo condicionado. A expressão é algo incongruente. Função social, a rigor, deveria significar função da sociedade. Até faria sentido dizer função socializadora, por exemplo, da propriedade, mas isto seria redundante. Afinal, o direito de propriedade, assegurado em isonomia, possui precisamente a função de possibilitar a vida em sociedade, através de seus corolários da liberdade e obrigatoriedade dos contratos. É como dizer que “a bola atenderá sua função esférica”. Mas como uma ressalva não pode ser tautológica, a expressão terá que receber um conteúdo semântico dado discricionariamente pelos agentes do Estado – dentro, porém da ordem constitucional. A adoção da expressão provavelmente se deve tanto a uma influência do funcionalismo de Durkheim, quanto a uma absoluta incompreensão sobre o tema.
Função social, na sociologia, é um aspecto da existência de institutos na sociedade, e serve para compreendê-los. É o modo pelo qual um instituto interage com os outros institutos, dentro da organização de determinada sociedade. Não se trata de algo passível de controle por outros órgãos, muito menos pelo Estado – que sequer se mostrou capaz de, ao legislar, entender o que queria dizer “função social”. Supor que o encarregado de aplicar a lei seja capaz de adequar os atos a seu suposto papel na sociedade é atribuir ao Estado uma divindade, um status supra humano que o erga acima da realidade para poder, ao invés de descrevê-la, criá-la. O erro fica óbvio quando se percebe que a própria legislação, que “impõe” o cumprimento de uma “função social”, teria ela mesmo, por ser uma instituição da sociedade, uma outra função social (no caso, uma disfunção, considerando o significado que a expressão toma no Direito).
A tese de metodologia do direito mais utilizada no Brasil afirma que se devem interpretar e aplicar as leis em estrita conformidade com a tábua axiológica da Constituição. Desta forma, a aplicação das leis deve dar-se, segundo essa teoria, conforme sua adequação aos fins e valores constitucionais fundamentais, sejam eles explícitos ou não. Só que, como vimos acima, isto apenas reitera a permissão constitucional da discricionariedade.
Dentre os adeptos dessa metodologia, destaco dois de seus mais influentes divulgadores na atualidade: o constitucionalista Luís Roberto Barroso e o civilista Gustavo Tepedino, ou civil-constitucionalista de acordo com o nome do movimento do qual é fundador. Este, em 1987, com seu artigo Pelo Princípio da Isonomia Substancial. Notas sobre a Função Promocional do Direito, causou especial comoção, influenciando a Constituinte para que nascesse assim parte significativa do artigo terceiro do texto constitucional.
Na esfera das relações privadas, ditadas por conceitos vagos como equilíbrio das prestações, a dignidade da pessoa humana e proteção do hipossuficiente, isso resulta num dirigismo contratual, possível diante do enfraquecimento da liberdade e obrigatoriedade contratuais que leis como o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil vêm provocando. Ademais, o que sobrou de uma orientação civilista clássica não escapa à crítica que reivindica eficácia das restrições constitucionais aos princípios clássicos, como vemos nos seguintes trechos.
“Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, debruça-se a doutrina na tarefa de construção de novos modelos interpretativos. (…) é preciso retirar do elemento normativo todas as suas potencialidades, compatibilizando-o, a todo custo, à Constituição. (…)indispensável manter-se um comportamento atento e permanentemente crítico em face do Código Civil para que (…) não se percam de vista os valores consagrados no ordenamento civil-constitucional”. – TEPEDINO, G. – ob.cit., p. VII.
Os inúmeros seguidores desse movimento de direito civil-constitucional referem-se a essa tendência como o “solidarismo” que deve orientar os Estados contemporâneos, com base na chamada isonomia substancial. Além de não ser possível impor solidariedade aos atos alheios, como eu já disse acima, é rara no Brasil a percepção de que a expressão isonomia substancial encerra contradictio in adjecto. Isonomia significa uma norma igual para todos, e sua predicação pela palavra substancial tem a intenção de significado de tratar de modo desigual os desiguais, na expressão corrente. Como a isonomia substancial implica a aplicação da lei de forma diferente para diferentes pessoas, conforme o grau em que a autoridade julgue-as hipossuficientes ou vulneráveis, trata-se na verdade de “anisonomia”. Este é mais um caso de inversão no sentido das palavras para tornar aceitável algo não associável a um Estado que se sujeite à Lei. De tão perfeitamente que se aplica a essa crença que se alastra por nosso País, transcrevo um trecho do livro de Hayek, em “A planificação e o estado de direito”:
“A autoridade planejadora não pode limitar-se a criar oportunidades a serem utilizadas por pessoas desconhecidas como lhes aprouver. Não pode sujeitar-se de antemão a regras gerais e formais que impeçam a arbitrariedade. Ela deve prover as necessidades reais das pessoas na medida em que forem surgindo, e depois determinar quais delas são prioritárias. É obrigada a tomar constantes decisões que não podem basear-se apenas em princípios formais e, ao tomálas, deve estabelecer distinções de mérito entre as necessidades das diferentes pessoas”. – Ob. cit, p. 87.
Pode-se dizer que esses argumentos demonstram haver, no Brasil, uma atuação distributiva mais por parte do Judiciário que da Administração. Mas isso não é relevante: seja pelo Judiciário ou pelo Executivo, ocorre a aplicação de leis aos casos concretos; é o Estado, no fim das contas, que está agindo. E a legitimidade para assim proceder se estende a todos os seus tentáculos, pois ao longo do tempo essa atitude estatal consagra-se como algo normal e aceitável. Vejamos algumas evidências disso.
A propriedade controlada
Hayek mostra que um sistema que resguarde o direito de propriedade é a mais importante garantia de liberdade individual. Isto, porque a propriedade distribuída entre indivíduos que agem independentemente, em busca de seu próprio benefício e concorrendo entre si, é o que impede o pleno poder de alguém sobre outrem. Se o controle dos meios de produção estiver todo concentrado em um ditador, ou em um órgão de burocratas, quem detiver esse controle terá o poder completo sobre a vida das pessoas.
Por isso, o Estado que planeja a economia, e não as regras da concorrência, precisa flexibilizar o direito de propriedade a ponto de controlá-lo. Ora, estabelecida a exigência de que a propriedade cumpra sua função social, quem quer que tenha o poder de decidir discricionariamente se há ou não esse cumprimento tem, portanto, o controle efetivo sobre a propriedade e tudo o que dela decorre.
Outra forma de controle, claro, é a tributação. No Brasil, ela é extremamente onerosa e injusta, por proteger grupos enormes da redução de suas rendas. Em “Segurança e Liberdade”, Hayek mostra que essa segurança é dada a uns ao custo da liberdade alheia. Quem se sujeita no País às flutuações da iniciativa privada tem sua liberdade reduzida ao lhe ser tomada grande parte do que produz, para sustentar a estabilidade de funcionários a quem nem se faz exigência de resultados e, em sua maioria, nem têm atividades produtivas. As benesses incluem aposentadorias integrais de muitos que nunca contribuíram para a previdência. E os gastos correntes não param de crescer, sempre com a concessão de direitos aos privilegiados do setor público, como se ela não implicasse deveres maiores aos preteridos do setor privado. Louvam-se os tais direitos adquiridos sem que se perceba que eles dependem de deveres adquiridos pelos outros.
A pouca chance que o credor tem de recuperar por via judicial o que é seu de direito é corolário do desrespeito à propriedade no Brasil. Não falo da ineficiência judiciária, mas das normas protetoras do devedor, como as leis do inquilinato e do bem de família, entre outras. A repulsa em nossa sociedade aos termos credor e proprietário leva ao emprego dessas normas tão elasticamente quanto possível. Afinal, elas têm notável compatibilidade com a dita tábua axiológica da Constituição da função social: estão de acordo, assim, com a metodologia do direito mais aceita.
Do mesmo modo, a propriedade rural cumpre a função social se atender a critérios irracionais de produtividade. Se não o fizer, será transferida àqueles que, segundo o código de valores morais do Governo, a merecem. Nos últimos governos, estes têm sido os apologistas da revolução maoísta, que invadem terras e ali organizam centros de treinamento de guerrilha, vigorosa doutrinação de crianças em escolas, recreação engajada etc., enfim, características típicas de regimes totalitários, como adverte Hayek. Os proprietários rurais, apesar de produzirem trinta e três por cento do PIB e de gerarem trinta e sete por cento dos empregos no País, são vítimas do ódio do MST e de seus simpatizantes, freqüentes na burocracia estatal e nas universidades. São os kulaks brasileiros, e, ao espalhar o ódio contra eles, Stédile é nosso Stalin. Isso leva a uma covarde omissão das autoridades diante das violências no campo. O esbulho não é combatido pelo Estado; a oposição do esbulhado, por sua vez, encontra resistência nas autoridades e em grande parte da opinião pública. Frágil, então, é a liberdade dos que legitimamente possuem terras ou nelas trabalham, pois quando não é atacada por invasores, é atacada pelo próprio Estado que a deveria proteger.
Prédios públicos em cidades são freqüentemente invadidos por legiões do MST e congêneres, e o viés ideológico que orienta o Estado no campo já tem seu caminho para dentro dos centros urbanos traçado na lei. É o Estatuto das Cidades, que em obediência à Constituição sujeita ao poder discricionário do Estado a propriedade urbana, ou seja, diz que esta deve cumprir sua função social. Para tanto, as propriedades têm de atender ao disposto nos planos diretores, estabelecidos em leis municipais. O fato de esses planos deverem ser instituídos pelos municípios pode sugerir que não estejamos diante de um caso de planificação central, já que a tarefa é delegada a entidades da federação outras que a União. Mesmo sem entrar no mérito de que isto não negaria a redução de liberdade imposta a quem detenha direitos de propriedade sobre território urbano, isto nos leva a outro ponto fundamental à percepção das ameaças à liberdade que encontramos no Brasil.
Federalismo nominal, centralismo de fato
Da leitura do capítulo “Planificação e Democracia” do livro de Hayek, percebe-se que o autor, com razão, tem o federalismo na conta dos melhores freios e contrapesos contra o poder absoluto. Assim, para o Estado planejador, a descentralização do poder político constitui um obstáculo, já que interesses locais dotados de força política podem ser contrários aos desígnios do poder central.
O Brasil não tem uma tradição federalista forte. Muito pelo contrário. Os períodos de centralismo político e administrativo em nossa História foram muito mais duradouros que os de descentralização. A Constituição vigente, entretanto, trouxe mudanças quanto a isto, atribuindo aos estados e municípios tarefas antes reservadas à União; porém, acabou-se fortalecendo o poder central, pois as receitas foram centralizadas. Assim, os estados e municípios, na dependência dos recursos que lhes serão repassados pela União, na prática acabam sujeitos a esta. Bismarck, insuspeito para opinar sobre o tema, dizia que “quem controla a bolsa tem o poder”. O poder da União sobre os outros entes federados pode, então, ser medido pela bolsa: em 2001, as prefeituras em média só arrecadavam em torno de um terço do que gastavam, nem chegando a um por cento nos menores municípios. Como se não bastasse, a voracidade de arrecadação do Estado brasileiro manifesta-se na constante criação e majoração das contribuições, destinadas à União, aumentando-se esse poder.
É realmente impróprio, então, chamar-se de federalismo o sistema brasileiro. Os freios e contrapesos, inconvenientes ao enorme poder que se concentra nas mãos do Executivo, são enfraquecidos de forma assustadora. Se tentarmos aprender com o erro dos outros como sugere Hayek, podemos, como ele, olhar para a própria Alemanha nos anos que antecederam o nazismo. Em muitos pontos, a nossa Constituição é parecida com a de Weimar. Carl Schmitt criticava esta por julgar necessário um Executivo mais forte – reivindicação que em última análise resulta na chegada dos piores ao poder, ensina Hayek. Ora, imaginar um Executivo mais forte que o nosso, em que seu chefe edita medidas-provisórias a seu bel-prazer, e que toma a iniciativa em noventa por cento das leis aprovadas pelo Legislativo, é até complicado. Complicado, mas certamente possível: a tarefa tem sido muito bem desempenhada pelo governo do PT, que mostra querer alcançar um poder cada vez mais abrangente. Uma mostra é a Lei dos Consórcios Públicos, aprovada em regime de urgência, que permitirá passar por cima do frágil federalismo brasileiro. O consórcio que tem personalidade jurídica de direito público “integra a administração indireta de cada um dos entes da Federação consorciados” e poderá “promover desapropriações e instituir servidões nos termos de declaração de utilidade ou necessidade pública, ou interesse social, realizada pelo Poder Público”. Outras mostras, mais graves, são aquelas que revelam a busca pelo poder mais absoluto. Aquele que, segundo Hayek, é o mais eficaz para “fazer com que todos sirvam ao sistema único de objetivos visado pelo plano social”. Ou seja: aquele que consegue controlar o pensamento mesmo do povo, a ponto de reduzir ao máximo, neste, o sentimento de opressão.
O desejo totalitário
A idéia de controlar as idéias parece encantar o governo atual. Os episódios das tentativas de implantar o Conselho Federal de Jornalismo e a Ancinav foram emblemáticas nesse sentido, como o é a proposta de reforma universitária. O primeiro visava à implantação de sistema pelo qual os jornalistas poderiam até mesmo ser impedidos de exercer sua profissão. Para termos uma idéia dos critérios que seriam utilizados para a cassação, basta-nos lembrar do que quis fazer nosso Presidente com o jornalista Larry Rohter. Parafraseando a citação de Trotsky feita por Hayek: para os jornalistas, “oposição significa[ria] morte lenta por inanição”.
Quanto à Ancinav, seus defensores costumam sair-se com a desculpa de que a intervenção não é cultural, e sim apenas econômica. Interessante ver como se aplica a esse caso a lição de Hayek sobre a praxe de eleger um “inimigo comum” que una o povo a ser dominado numa mesma orientação. Os Estados Unidos, no papel desse inimigo, são usados como justificativa: seus filmes são “hegemônicos” e impedem o desenvolvimento do cinema nacional, que, pois, deve ser protegido. Solução? Cobra-se uma taxa sobre os ingressos e destina-se o dinheiro aos filmes nacionais. Porém, na medida em que o Governo tivesse o poder de decidir a quem destinaria os recursos, evidentemente ele estaria tendo uma discricionariedade sobre o conteúdo das produções. Afinal, não lhe seria necessário proibir a filmagem do que quer que fosse – bastaria negar-lhe o financiamento. Fiel a seu propósito, o Governo não se desestimulou diante da rejeição inicial ao projeto, que está “marchando firme e democraticamente”.
Por último, a reforma universitária. Aprovado, o projeto será a coroação de um processo que se inicia já no ensino fundamental, passando pelo médio. A influência de Paulo Freire sobre as faculdades de Pedagogia garante a absoluta predominância das idéias de esquerda entre os professores escolares. Os livros escolares, com destaque para os de História e Geografia, refletem essa tendência ao explicar o mundo sob a ótica marxista.
Nas universidades, em muitos cursos já acontece um fenômeno parecido com o que se vê nas escolas. A idolatria a símbolos como a foice e o martelo, Che e Fidel, comum no meio acadêmico, reflete o discurso que ali prevalece. Porém, apesar da resistência do establishment acadêmico ao pensamento que destoe do que quer que se tenha como mainstream, por si só um problema gravíssimo, o indivíduo que estiver disposto a remar contra a maré de antipatia dos colegas pode desenvolver seu pensamento livre e independentemente, sem perseguição ideológica que leve ao banimento ou algo do gênero. Contudo, o golpe que os defensores da reforma querem dar nisso é mortal. Aprovado o projeto, toda atividade acadêmica será planejada pela Administração segundo preceitos que servem, pelas maneiras já descritas, para tirar da frente do poder estatal o obstáculo do princípio da legalidade. Entre outras exigências parecidas, as instituições de ensino superior, inclusive as privadas, terão de ter responsabilidade social, definida como o atendimento de políticas e planejamentos públicos para a educação superior.
O planejamento da vida acadêmica, para quem está nela ou pretende abraçá-la será entregue ao Estado. Pelo seguinte: a liberdade de ensino estará confinada àquilo que a burocracia disser que é sua função social, e até mesmo a formação e os estudos a serem seguidos por uma pessoa deverão estar especificamente voltados para o desenvolvimento social de uma região, ou eventualmente para a demanda específica de uma organização social, digamos do campo. Praticamente não haverá limites à sujeição dos rumos da vida de cada pessoa, dentro do âmbito universitário, às deliberações de órgãos compostos por membros que não terão possibilidade de tomar decisões que sejam justas aos acadêmicos. Ao anteprojeto, tour-de-force de stalinismo, não faltaram nem mesmo os planos qüinqüenais, alcunhados de “planos de desenvolvimento institucional”.
Que isto sirva de alerta: planificar os centros de pensamento é arriscar torná-los fábricas de pessoas que, acostumadas a agir como determina o poder central, a pouco e pouco alastrarão este costume pela sociedade, não tardando o momento em que o controle estatal da existência mesma dos indivíduos terá sido implantado sub-repticiamente. Se é exigida no anteprojeto a promoção da dignidade da pessoa humana, pergunto: qual a dignidade em ser uma marionete nas mãos do títere de um teatro totalitário? Privar tão acintosamente alguém de sua liberdade não é, ao mesmo tempo, tomar-lhe a dignidade e sua própria humanidade?
Conclusão
Para o âmbito deste trabalho, penso ser importante fazer uma distinção entre os políticos e ideólogos a quem Hayek cordialmente dirigia suas críticas, e aqueles a quem devemos responsabilizar pelo caminho que nosso país vem tomando. A seus opositores, o professor concedeu a gentileza de atribuir as idéias protototalitárias a erro intelectual, a ingênua falta de visão que lhes permitisse entender que suas reivindicações de planejamento apenas econômico levariam a uma supressão de liberdade individual da qual eles talvez discordassem, e a práticas que muitos deles certamente rejeitariam com veemência.
Mas o que dizer de quem tenta cerceá-la diretamente? Não será isto o totalitarismo assumido? Não estaremos, já, assistindo à chegada dos piores ao poder? A busca desenfreada pelo poder absoluto não será antes o sintoma da corrupção absoluta já consumada daqueles que a promovem, ao invés de sua causa?
Diante da grandeza do desafio, a condução do Brasil a uma rota de prosperidade e liberdade só é possível pelo fator de transformação histórica mais poderoso de todos: a iniciativa individual do ser humano. Cada um de nós que assumamos a responsabilidade deve difundir as idéias que mostrem que a liberdade é um fim em si mesma. Há que se ter como parâmetro irrenunciável aquele lembrado por Hayek, segundo o qual “o princípio de que o fim justifica os meios é considerado a negação de toda a moral”, pois só venceremos o debate mostrando que os meios eleitos por nossos opositores são intrinsecamente falhos.
Usemos somente, portanto, o instrumento do qual eles abdicaram e que tanto se esforçam para destruir, pois é o remédio mais poderoso em favor do convencimento: a mais pura e franca verdade.
Fonte: Instituto Liberal
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