O PIB é usado como síntese do sucesso econômico. Se quisermos aferir o progresso dos povos, temos de nos debruçar sobre outras dimensões da experiência humana. Um bom roteiro é encontrado no livro de Stiglitz, Sen e Fitoussi: “(Mis)Measuring Our Lives”. O livro reflete as conclusões de uma comissão de notáveis sobre como medir o progresso das nações aqui nomeadas em três vertentes: prosperidade, igualdade e sustentabilidade. Medimos estes elementos a partir de microdados de pesquisas domiciliares de uso público até abril de 2014.
Entre 2003 e 2012, o PIB e a renda média da Pnad cresceram 27,8% e 51,7%, respectivamente, em termos reais per capita. Isto é descontando a inflação e o crescimento da população. As duas séries nominais têm desempenho similar. Portanto a diferença real é explicada pelo fato do deflator implícito do PIB subir no período cerca de 23 pontos de porcentagem acima do INPC (ou do IPCA). Sabemos exatamente o que os índices de inflação do consumidor medem e que há um viés dele para cima por não incorporar a possibilidade de substituição de bens que ficaram relativamente mais caros. Nos EUA esse viés tem correspondido a 0,25 pontos percentuais por ano numa inflação situada a menos 2 pontos por ano em 2012. Logo o crescimento real Pnad deflacionada pelo INPC é conservador.
A discrepância entre o PIB e a renda média das famílias é ainda maior em 2012 com diferença de crescimento de quase 8 pontos de porcentagem, não explicada neste caso pelos deflatores. O Brasil real das pesquisas domiciliares cresceu mais que o das contas nacionais, diferença esta explicada pela diferença de deflatores.
A renda mediana da Pnad cresceu 78,4% entre 2003 e 2012. Ou seja, o João que habita o meio da Belíndia brasileira prosperou a taxas indianas contra as taxas belgas do PIB. A renda dos 10% mais pobres cresceu 106,2%. Ou seja, quatro vezes mais que o PIB.
A ausência da Pnad de 2013 e de 2014 cria percalços empíricos. Recorremos à PME que já nos permite observar a estagnação da renda domiciliar per capita real entre março e junho de 2013. Ao passo que o PIB do segundo trimestre de 2013 teve crescimento anual de 6% em dissonância com as manifestações de junho. Há gradativa retomada do crescimento ao longo dos três trimestres posteriores atingindo 4,35% na média e 6,8% na mediana nos 12 meses até abril de 2014.
O brasileiro mediano está tendo crescimento próximo ao da economia da China hoje, que por sua vez tem crescido cerca de dois pontos de porcentagem abaixo da renda das respectivas pesquisas domiciliares. Este descolamento do crescimento da renda das pesquisas que vão à casa das pessoas e o PIB, favorável ao último, é a regra observada na grande maioria dos países no período recente.
A desigualdade aumentou em dois terços dos países, enquanto entre nossos dois últimos censos a desigualdade caiu em 80% dos municípios. Depois de 10 anos de queda ininterrupta a desigualdade, segundo o Gini, se manteve praticamente estabilizada entre as Pnads 2011 e 2012, passando de 0,527 para 0,526. Esta estabilidade é consistente com os dados da PME nos mesmos períodos. A desigualdade volta a cair fortemente a partir de abril de 2013. A queda de quase 10 pontos de Gini nos últimos 12 anos, sob qualquer comparação, é espetacular.
O Brasil segue o caminho do meio combinando crescimento da renda do conjunto das pessoas com redução de desigualdade entre elas. As séries tanto da média como da desigualdade da PME, iniciada logo antes da conquista da Copa de 2002, estão, às vésperas da Copa de 2014, exatamente em cima da linha de tendência. Comparando o crescimento anual de renda individual neste glorioso período de 12 anos (3,06%) muito próximo do observado nos últimos 12 meses (3,17%) e 3 anos (3,18%) há marcada queda da desigualdade horizontal. Cresce mais a renda de grupos tradicionalmente excluídos como negros 4,4%; analfabetos 5,8% e os da periferia 4,4%.
A PME é restrita à renda do trabalho nas maiores metrópoles, ampliando o foco: nos 12 últimos meses o valor real per capita dos benefícios da previdência cresceu 5,27% e os do Bolsa Família, 5,4%, sem computar o recente reajuste de 10%. Complementarmente, ao abrirmos a cobertura das 6 grandes metrópoles da PME para o país da Pnad Contínua, o emprego floresce em maior quantidade, gerando um incremento de renda quase 1 ponto de porcentagem maior que da PME. Tal resultado já era esperado à luz do Caged que já mostrava redução de 9% no número de novas carteiras de trabalho geradas nas cidades da PME contra um aumento de e 22% no resto do país. Em outras palavras, as estimativas de crescimento restritas à renda do trabalho nas áreas metropolitanas da PME nos últimos meses são conservadoras.
Se há limitações nos dados da PME, todas as principais inflexões da distribuição de renda no contexto brasileiro nos últimos 30 anos foram inicialmente antecipadas pela PME (booms surgidos depois dos planos Cruzado e Real, os efeitos das crises externas de 1997, 1999 e 2008). A PME tem se revelado um excelente indicador antecedente da Pnad. Em dezembro de 2012, publiquei o Comunicado 158 do Ipea que antecipou pela PME os resultados da Pnad com nove me ses de antecedência, e sugerimos crescimento da renda do trabalho 6,1% (contra 7,5% da Pnad 2012), bem acima do pibinho de 1% e desigualdade estável em 0,522 (contra 0,526 da Pnad ainda amazônico).
Os dados da PME tornam possível acompanhar a trajetória das mesmas famílias por curtos intervalos de tempo, permitindo medir as oportunidades de ascensão social aproveitadas. No período 2002/2003, apenas 16 em cada 100 pessoas cruzaram a mediana de baixo para cima. Dez anos depois 27 em cada 100 pessoas percorreram o mesmo trajeto. O risco de regressão do brasileiro encontra-se num dos níveis mais baixos da série, em contraste com o risco país.
As pesquisas domiciliares discutidas acima revelam que apesar do cenário macroeconômico adverso, há surpreendente sustentabilidade do processo de crescimento inclusivo brasileiro.
Fonte: Valor Econômico, 26/06/2014.
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