Apesar de Aristóteles, há mais de 2 mil anos, ter inventado (ou descoberto) o “Princípio de não-contradição” e este permanecer de pé até hoje, nem sempre – e no Brasil quase nunca – ele tem sido observado e levado a sério.
O grande filósofo grego nunca propôs que seu princípio fosse aplicado a bate-papos descontraídos de botequim, à arte de contar piadas e coisas do gênero. Aplicava-se tão-somente ao logos apophântikos, expressão do grego clássico que pode ser traduzida como sentença declarativa ou como discurso declarativo.
Uma sentença desse tipo é aquela mediante a qual afirmamos um fato e/ou descrevemos um estado de coisas. Por sua vez, um discurso desse tipo é aquele em que predominam as sentenças declarativas e tem um caráter assertivo.
Por exemplo: se alguém disser que a Lua é cerca de 50 vezes menor do que a Terra, ele estará emitindo uma sentença declarativa, porque estará afirmando um fato e seu discurso será também do tipo declarativo, uma vez que esta sentença é uma das muitas podendo ser encontradas em um livro de Astronomia.
No entanto, não é necessário que o emissor da mencionada sentença seja um astrônomo. Qualquer um que emití-la estará afirmando um fato, e um fato – assim como a própria linguagem que permite afirmá-lo – é coisa impessoal, de domínio público.
Do mesmo, se alguém afirmar que Roma pegou fogo na época de Nero, ele estará afirmando outro fato podendo ser enunciado por qualquer ser falante, mesmo que ele não tenha sido testemunha ocular, mesmo que ele não seja um historiador e até mesmo que não conheça patavina da história de Roma. E é por isso mesmo que Nelson Rodrigues costumava dizer para os “idiotas da objetividade”: “Eu não preciso ter estado em Roma, para saber que Nero botou fogo em Roma”.
Mas, afinal de contas, como é formulado o “Princípio de não-contradição” e por que ele é tão importante? Ele pode ser formulado de várias maneiras igualmente válidas. Não o formularemos do mesmo modo que Aristóteles o fez, mas sim para nosso propósito presente: ~(p.~p), ou seja: “A conjunção de uma sentença declarativa e sua negação não pode ser verdadeira [ao mesmo tempo e sob o mesmo ponto de vista]”.
Em outras palavras: quem quer que afirme: “Lula é um grande estadista” e logo em seguida: “Lula não é um grande estadista”, pode estar querendo gerar perplexidade, brincando com as palavras, padecendo de grave enfermidade mental”, etc. Só não está afirmando nenhum fato, pois não há neste mundo em que vivemos nenhum fato em que algo é e não é alguma coisa, ao mesmo tempo e sob o mesmo ponto de vista.
Como havíamos dito, embora tenha sido inventado (ou descoberto) por Aristóteles há mais de 2 mil anos, o referido Princípio nem sempre tem sido observado e levado a sério em Pindorama. Resta esclarecer que se trata de um princípio normativo que, diferentemente dos princípios da Física, não se aplica ao domínio daquilo que é, porém ao daquilo que deve ser, como normas jurídicas e metodológicas.
Desse modo, Aristóteles nunca afirmou que não costumamos cometer contradições, mas sim que podemos, ainda que não devamos – não em todo e qualquer contexto, mas sim num específico contexto.
Não devemos cometê-las somente quando estamos “falando sério”, i.e. quando usamos a linguagem para fornecer ao nosso interlocutor informações objetivas, seja em assuntos da vida cotidiana, seja quando expressamos teorias científicas e/ou filosóficas ou mesmo em qualquer situação em que está em jogo a comunicação de fatos e/ou a descrição clara e objetiva de estados de coisas.
Mas por que não? Simplesmente porque quando cometemos uma contradição não comunicamos nenhuma informação, embora não deixemos de expressar alguma coisa, que tanto pode ser bom humor como humor azedo, perplexidade, confusão mental, etc. Sempre expressamos algo quando falamos qualquer coisa, mas nem sempre dizemos algo. Podemos falar para não dizer coisa nenhuma – como costumam fazer candidatos em programas eleitorais duplamente gratuitos na TV – daí a famosa expressão “Falou e disse!”
Apesar de tudo isto e mais algumas coisas, o fato é que o ignorante, hedonista e frívolo povo brasileiro nunca levou a sério o “Princípio de não-contradição”. Ele é simplesmente encarado como uma intolerável restrição à “liberdade de expressão. Mas assim como “não há liberdade sem lei” (John Locke), não há expressão inteligível e informativa, caso o referido princípio lógico seja violado.
Apenas para dar um entre centenas de exemplos: consideremos aquela escabrosa taxa que ficou sendo conhecida como “imposto sobre combustíveis”, mas cujo rótulo oficial era empréstimo compulsório. Não saberíamos dizer qual dos dois nomes é o pior!
“Empréstimo compulsório?” Não me façam rir! Poupem-me! Esta expressão é uma verdadeira contradictio in adjectio (contradição nos termos). Um empréstimo, de qualquer coisa e de qualquer natureza – de dinheiro, de um livro, de uma máquina fotográfica, etc – subentende um ato voluntário do emprestador.
Alguém pode ser obrigado pagar um imposto. Aliás, nome diz tudo: “imposto” deriva do particípio passado do verbo “impor”. Por isso mesmo, dizer que um imposto ou uma taxa são compulsórios é expressar um indesejável pleonasmo, pois nada acrescenta ao que eles já são por definição. Ninguém os paga por sua livre e espontânea vontade, mas sim por temor das possíveis consequências advindas do não-pagamento. E como já dizia o indefectível Dr. Samuel Johnson: “Nesta vida só há duas coisas certas: a morte e os impostos”.
Mas se um empréstimo é, por definição, algo dependente de um ato voluntário do emprestador, está na ordem das ações que são facultativas. De onde se conclui que se “empréstimo facultativo” é um indesejável pleonasmo, “empréstimo compulsório” é uma não menos indesejável contradictio in adjectio.
Mas os brasileiros em geral são bastante pródigos não só na emissão de gritantes contradições como na de indesejáveis pleonasmos, mas não se sentem nem um pouco acanhados e/ou envergonhados. Para dar apenas outro exemplo: eis o caso de um breve diálogo que bem poderia ter se passado entre brasileiros:
Um indivíduo, tendo observado em um almoço que o comensal ao seu lado estava com os olhos avermelhados e lacrimejantes, disse: “Vejo que o amigo está com uma conjuntivite nos olhos”. Um outro comensal sentado ao lado sussurrou ao pé do seu ouvido: “Isso é um pleonasmo, meu amigo”.
Pouco tempo mais tarde, tendo chegado em casa, encontrado seu filho e observado que ele estava com o olho direito avermelhado e lacrimejante, não teve dúvida e soltou: “Meu filho, vejo que você está com um pleonasmo no olho”.
Não o culpemos por ignorar que apendicite é inflamação do apêndice assim como conjuntivite é inflamação da membrana conjuntiva, coisa esta que só existe nos olhos. Afinal de contas, ele não tinha nenhuma obrigação de saber isso, porque não era médico. Não o culpemos tampouco por não saber que pleonasmo é um termo metalingüístico, coisa que nem os médicos sabem, porque não é propriedade de coisa nenhuma, porém uma propriedade de determinadas expressões da linguagem. Mas “metalinguagem” é coisa de lógicos, filósofos e estudiosos da linguagem.
Afinal de contas, não é só uma personagem de piada que profere, sem nenhum acanhamento ou pejo, coisas tais como contradições e pleonasmos. Famosas figuras da história e não menos famosos artistas brasileiros já pagaram esses micos diversas vezes.
Vejam por exemplo o caso de um de nossos maiores compositores – e não há nenhuma ironia no que afirmamos. Numa só composição, o grande compositor Ary Barroso soltou dois indesejáveis pleonasmos: “Brasil, meu Brasil brasileiro…”. Queria que o Brasil fosse o que, turco?! “Este coqueiro que dá coco”. Queria que coqueiro desse o que, jaca?
Poderiam alegar os defensores do referido compositor que a expressão: “Brasil brasileiro” fazia alusão nacionalista ao autêntico “Brasil” com “s”, não ao “Brazil” com “z” de determinados “entreguistas”. “Brazil” é como se escreve Brasil em inglês, como todo mundo sabe, até mesmo aqueles admiradores de Policarpo Quaresma que gostariam de escrever em produtos exportados: Feito no Brasil em vez de Made in Brazil.
Ocorre que no século XVI, tanto portugueses como brasileiros e o resto do mundo escreviam Brazil com “z”, de acordo com a ortografia da época. Posteriormente, nós a modificamos escrevendo Brasil com “s”. A ortografia da língua inglesa teve uma única reforma ortográfica por essa época, mas conservou nossa grafia: nós é que não a conservamos em nossas infindáveis reformas ortográficas feitas por gramáticos pedantes. Num país de analfabetos, o gramático é rei por direito divino. E quem fala difícil é o professor Astromar ou Odorico Paraguaçu , insigne Prefeito de Sucupira (ambos hilariantes personagens de Dias Gomes).
E os brasileiros apedeutas, que consideram os ingleses presunçosos e querendo ser diferentes do resto do mundo, é bom ficarem sabendo que a Inglaterra não é diferente do resto do mundo, este é que é diferente da Inglaterra.
Vejam, por exemplo, o caso da chamada “mão inglesa”. Antes do abominável corso Nebulion Buonaparte – este era seu nome de nascimento que foi afrancesado depois – todos os países da Europa, inclusive a Inglaterra, adotavam a referida “mão”. Nebulion é que a mudou por decreto autoritário. Por que raios a velha Albion, que não é uma “Maria Vai com as outras”, tinha que fazer o mesmo? Preposterous! –como diria o valoroso Duque de Wellington que acabou com a tirania de Napoleão no Continente.
Eis aí dois casos em que se justifica o vetusto lema dos legisladores britânicos: Nollimus leges Angliae mutare (Não queremos mudar as leis da Inglaterra). Isto se referia, é claro, às leis básicas, como a Magna Charta de 1215, que deu margem a ampliações – como a Bill of Rights de 1689 – mas até hoje não foi revogada, como costumam ser as leis por infindáveis Constituições em banana republics.
Não é de surpreender num país esquizofrênico em que todas as regras estão sempre mudando conforme a moda de verão, não só as gramaticais como também as normas jurídicas e a regulamentação da atividade econômica.
O Brasil não está na ordem do Ser nem do Não-Ser, mas sim do Vir-a-Ser: já não é mais um país agrário com a monocultura do café, mas ainda não é “O país do futuro” de Stefan Zweig, apesar da TV Globo todo fim de ano ficar repetindo aquela musiquinha chata com seu surrado refrão: “o futuro já começou”.
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