Um dos mais influentes analistas de economia do mundo, o britânico Martin Wolf, considera ser inevitável um “duro ajuste fiscal” no Brasil. Segundo Wolf, colunista do jornal Financial Times e doutor honoris causa pela London School of Economics (LSE), o governo brasileiro exagerou na expansão fiscal – aumento de gastos e cortes de impostos – até 2014 e uma correção forte precisa acontecer logo, como única forma de permitir o corte da “enorme” taxa de juros do País. Somente assim os investimentos poderão sair do papel e a economia voltar a crescer. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Como está a economia global?
O mundo pós-2008 ainda está se redesenhando, com os EUA relativamente fortes, mas com dificuldades crescentes em outros países, em especial os emergentes que são vendedores de commodities. Os emergentes cresceram muito logo depois da crise mundial principalmente por causa da resposta dada pela China. Na época, os chineses aplicaram um pacote monumental de estímulo à economia, impulsionando o crédito e a infraestrutura. Isso permitiu que continuasse crescendo fortemente e importando commodities. Até 2012, o modelo funcionou. Mas então os chineses perceberam que não conseguiriam mais sustentar as taxas de crescimento acima de 10% como fizeram desde os anos 1980 e era hora de alterar a forma como estavam crescendo. O país teve um dos maiores “booms” de crédito da história econômica e aquilo não poderia continuar. A desaceleração da China teve efeito dramático sobre os vendedores de commodities, principalmente na América Latina, na África e no Oriente Médio. Desde então, esses países têm vivido um choque negativo e ninguém sabe aonde isso vai dar.
A reação para esse mundo novo a partir de 2012 não parece ter funcionado, correto?
Muito dinheiro foi emprestado pelos países ricos aos emergentes, especialmente o setor privado e o setor financeiro, durante o período do boom. Com a mudança da China, alguns emergentes usaram a política fiscal para tentar equilibrar a economia, cortando impostos e aumentando gastos, mas isso aumentou a dívida pública. Agora, eles têm de lidar com isso. Além disso, muitos países estão vivendo problemas relacionados à corrupção, o que é normal: sempre que há momentos de crescimento forte e riqueza, há muita corrupção, o que fica claro quando as coisas mudam de cenário.
O senhor parece, em especial, estar falando do Brasil.
Não sou especialista no Brasil, mas acompanho o país há mais de 50 anos como analista econômico. Acho que, em 2009, foi perfeitamente razoável a resposta dada pelo governo à crise do mundo desenvolvido. Os emergentes, de modo geral, estavam mais fortes nas contas públicas e com grandes reservas. Foi uma decisão acertada fazer política anticíclica. Mas, quando ficou claro que a China tinha se recuperado fortemente e as commodities continuavam crescendo, era preciso parar de estimular a economia. No caso dos países desenvolvidos, a história era outra: EUA e Europa precisaram continuar com uma dose elevada de estímulos porque estavam no olho do furacão da crise. Mas os emergentes deveriam ter parado. Como disse a você dois anos atrás (em entrevista publicada no Estado em setembro de 2013): países com problemas estruturais não devem fazer forte expansão fiscal. O caso de países emergentes que sequer são “triplo A” ou mesmo “duplo A” (notas altas das agências de classificação de risco) é ainda mais claro: a forte e duradoura expansão fiscal traria problemas para os países. Houve exagero no Brasil.
E agora?
Em muitos países, e esse é o caso do Brasil, não há alternativa a um duro aperto fiscal. O novo ciclo das commodities, com preços baixos, é algo permanente. Alguns preços podem subir, eventualmente, mas de modo geral o ciclo está instalado. A renda geral dos países exportadores será mais baixa. Ponto. Entendendo isso, não há outra alternativa a não ser apertar os cintos, algo até que deveria ter sido feito antes. Essa me parece ser a vontade do ministro da Fazenda, a partir de encontros que tive com ele. Mas fato é: se há perdas permanentes para a economia, ajustes são necessários. O País está mais pobre do que pensavam que estaria. Mais desvalorização cambial deve ocorrer, o que ampliará as exportações. A política monetária deve ser usada como estabilizadora da economia, mas para isso, as contas públicas precisam melhorar. As taxas de juros são elevadas no Brasil e inibem o crescimento, mas antes de uma mudança neste lado é preciso melhorar o lado fiscal. Acredite, é inevitável.
O governo Dilma Rousseff praticou manobras contábeis entre 2012 e 2014, as “pedaladas fiscais”. O governo diz que os atrasos nos pagamentos do Tesouro aos bancos públicos foram decorrentes da baixa arrecadação e todos os governos fazem isso. O que o sr. acha?
Sei que práticas semelhantes foram feitas em países que passaram por dificuldades extremas, como Grécia e Itália, em anos recentes, com atrasos nos pagamentos aos fornecedores do Estado. Não conheço prática semelhante em países como os EUA e outros da Europa, ao menos no campo federal. Entendo que países bem administrados não precisam recorrer a esse tipo de manobra. Mas há um problema inevitável que surge com manobras como esses atrasos.
Qual?
Esse processo de atrasar pagamentos e transferências obrigatórias produz uma dívida nova do setor público. O governo pode não pagar no presente, mas terá de pagar no futuro. Então, o governo terá, no futuro, de aumentar impostos ou cortar de outras áreas para fazer esses pagamentos que ficaram atrasados. Essa dívida, também, mostra que as contas públicas de países que recorrem a essas manobras não são tão transparentes. Qual é a dívida real de um país? Tudo aquilo que o setor público deve e, em algum momento, pagará. Atrasar no presente gera um problema para o futuro.
O governo alega que tem corrigido boa parte das “pedaladas”, embora ainda existam muitos atrasos aos bancos públicos.
Esses atrasos acontecem em países em crise, mas não deveriam. Esse tipo de prática não pode ser legitimada. É apenas uma forma de um governo evitar um confronto com a realidade. Mas não é possível fazer isso por muito tempo. Uma hora o governo terá de pagar, não é? E se não puder aumentar impostos ou cortar outras despesas para arcar com essa dívida nova? O governo vai dar um calote? Esse comportamento fiscal não pode ser justificado. Aqui não se trata de uma posição de esquerda ou de direita. Todos devem pensar que o governo, qualquer governo, tem uma obrigação moral de ter contas públicas verdadeiras.
O Brasil corre o risco de perder o grau de investimento por uma segunda agência, além da Standard & Poor’s. Como o sr. vê o Brasil daqui para a frente?
O crescimento potencial brasileiro deve estar na faixa de 3% a 3,5% ao ano, talvez um pouco menos ou um pouco mais. Refiro-me em perspectiva histórica. É claro que agora está muito mais baixo, mas, de modo geral, o crescimento brasileiro deve oscilar em 3,5%. Se quiserem crescer mais do que isso sem gerar problemas é preciso mudar coisas muito importantes na economia. Os impostos são muito altos para um país como o Brasil, o Estado é grande demais e há muito o que fazer na infraestrutura. O gasto enorme que o governo faz todos os anos não parece produzir crescimento. Como é possível ter um boom de investimentos se a taxa de poupança da economia é baixa e os juros são altos? Esses problemas têm de ser endereçados. O Brasil é muito cíclico.
Como assim?
Ao longo da história, o Brasil vive muitos “booms”, períodos de crescimento acelerado, e muitas explosões de bolha. O País está sempre numa fase muito boa ou numa fase muito ruim, como parece ser agora. O Brasil tem um governo cheio de problemas, com uma série de programas que não parecem funcionar e um orçamento amarrado, praticamente impossível de ser administrado. Aumentar impostos no Brasil é difícil porque afeta profundamente a taxa de crescimento da economia. As taxas de juros são muito altas e inibem os investimentos. Estou preocupado com as finanças públicas de países emergentes e o Brasil é um deles, isso realmente precisa ser resolvido. Mas tenho dúvidas quanto à melhora dos problemas estruturais por causa do relacionamento do governo com o Congresso. Quando o Brasil voltar a crescer, porque isso vai acontecer de um jeito ou de outro, nada é para sempre, a sociedade precisará discutir essas questões maiores.
Os EUA parecem em recuperação, prestes a iniciar a primeira alta de juros em quase 10 anos. Como o sr. vê o país?
Embora estejam melhores, os EUA ainda têm um crescimento fraco. Não sei como os mercados vão reagir quando o Fed voltar a elevar os juros. Algumas pessoas dirão que é cedo e outras dirão que foi feito tardiamente. O mercado já se antecipou a esse movimento, mas ainda podemos ter grandes surpresas. O impacto pode ser muito maior do que imaginamos, ainda que o Fed apenas estará fazendo algo que todo mundo já sabe que vai fazer em algum momento próximo. Se esse aumento for lido como início de um período de aperto duro nas taxas futuras, os mercados podem ficar pessimistas e o mundo todo reagirá de forma ruim. No entanto, se o mesmo movimento for lido como sinal do Fed de que a economia americana enfim está recuperada, com desemprego baixo, então investimentos poderão sair do papel e um clima de otimismo pode ser desencadeado. Os mercados são sempre imprevisíveis.
A fase aguda da crise na Europa pode ter sido superada?
Este é um cenário realmente muito difícil de traçar. Na zona do euro e no Reino Unido vejo um crescimento potencial de 1% a 1,5% por ano, nada além disso. A imigração não é suficiente para mudar a estrutura do mercado de trabalho nos países europeus. Este é um grande problema, o envelhecimento da população. Há um problema social tremendo, com os refugiados do Oriente Médio buscando países europeus, mas mesmo a entrada de todos eles, cerca de um milhão de refugiados, não resolveria o problema da falta de mão de obra. Mas há fatores positivos. A confiança de consumidores e empresários em dois países importantes, a Espanha e a Itália, tem melhorado. Os juros de longo prazo continuam muito baixos e as ações do Banco Central Europeu para estimular o crédito têm funcionado. Se tudo der certo, a União Europeia pode engatar, num futuro próximo, dois ou três anos consecutivos de crescimento médio na faixa de 2,5%, mas nada além disso.
Fonte: O Estado de S.Paulo.
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